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ESPECULAÇÕES FOUCAULTIANAS SOBRE UMA NEOCIÊNCIA UBUESCA

ESPECULACIONES FOUCAULTIANAS SOBRE UNA NEOCIENCIA UBUESCA

FOUCAULDIANS SPECULATIONS ON A NEOSCIENCE UBUESQUE

RESUMO:

O presente artigo resulta de um estudo que tem como objetivo caracterizar uma neociência ubuesca. Para tanto, se vale de investigar práticas discursivas situadas em regiões de cientificidade que, diante de soluções imaginárias, permitem pensar numa neociência que agrega a imaginação e o humor ubuescos, se ocupa com a vida e a morte e produz verdades que constituem modos de vida. Tais elementos se entrecruzam ao poder ubuesco, referido por Michel Foucault na obra Os Anormais (1974-1975). Para a análise dessas práticas adotamos como procedimento metodológico a arquivização, conforme Julio Groppa Aquino. A partir da aproximação do pensamento foucaultiano com a literatura de Alfred Jarry, especialmente em suas criações Pai Ubu e ‘Patafísica - a ciência de soluções imaginárias -, caracterizamos uma neociência ubuesca.

Palavras-chave:
Poder ubuesco; Ciência; Michel Foucault

RESUMEN:

Este artículo es el resultado de un estudio que tiene como objetivo caracterizar una neociencia ubuesca. Para ello, recurre a la investigación de las prácticas discursivas ubicadas en regiones de cientificidad que, frente a soluciones imaginarias, permiten pensar una neociencia que combina imaginación y humor ubuescos, se ocupa de la vida y de la muerte y produce verdades que constituyen modos de vida. Tales elementos se entrecruzan com el poder ubuesco, al que se refiere Michel Foucault en la obra Os Anormals (1974-1975). Para el análisis de estas prácticas, adoptamos el archivo como procedimiento metodológico, según Julio Groppa Aquino. A partir de la aproximación del pensamento foucaultiano con la literatura de Alfred Jarry, especialmente en sus creaciones Pai Ubu y ‘Patafísica - la ciencia de las soluciones imaginarias -, caracterizamos una neociencia ubuesca.

Palabras clave:
Poder ubuesco; Ciencia; Michel Foucault

ABSTRACT:

This work is the result of a study that aims to characterize an ubuesque neoscience. To do so, the study aims to investigate discursive practices in science regions that, before imaginary solutions, allow to think on a neoscience that aggregates both ubuesque humour and imagination, deals with life and death, and produce truths that constitute ways of living. Such elements intersect with ubuesque power, mentioned by Michel Foucault in his work Abnormal (1974-1975). To analyse these practices, we took archiving as methodological procedure, according to Julio Groppa Aquino. From the approximation of the Foucauldian thought with Alfred Jarry’s literature, especially his creations Pa Ubu and ‘Pataphysics - the science of imaginary solutions -, we characterize an ubuesque neoscience.

Keywords:
Ubuesque power; Science; Michel Foucault

INTRODUÇÃO

Este artigo integra um estudo vinculado à linha de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul que tem como objetivo investigar implicações das práticas científicas na constituição dos sujeitos e de currículos, tendo como base autores da perspectiva pós-estruturalista - em específico, nos valemos das discussões filosóficas de Michel Foucault (1926-1984). Por conta disso, descrevemos inicialmente noções que consideramos relevantes e com as quais operamos ao longo do artigo. Ressaltamos que o presente texto é recorte de uma tese de doutorado que investiga práticas discursivas situadas em regiões de cientificidade que, diante de soluções imaginárias, permitem pensar numa neociência que agrega a imaginação e o humor ubuescos, se ocupa com a vida e a morte e produz verdades que constituem modos de vida. Tais elementos se entrecruzam ao poder ubuesco, referido por Foucault (2010aFoucault, M. (2010a). Os Anormais. Curso no Collègge de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes .) na obra Os Anormais (1974-1975). Além disso, o estudo insinua aproximações com a literatura do poeta e dramaturgo Alfred Jarry (1873-1907), de maneira especial em duas de suas criações: Pai Ubu e ‘Patafísica - a ciência de soluções imaginárias.

“Ubuesco” deriva de Ubu, protagonista de quatro peças teatrais criadas por Jarry (2021Jarry, A. (2021). Ubu Rei ou Os poloneses. São Paulo: Ubu Editora.), que juntas formam um ciclo. A peça teatral mais conhecida é Ubu-Rei (1896), que conta em cinco atos as experiências de Pai Ubu que, ao tomar o governo da Polônia, assassinando o governante que ocupava o trono, se autoproclama Rei. Quando assume o cargo, expõe seu lado déspota ridículo, pelo qual seus mandos e desmandos passam pela tirania e pela presença acentuada da própria covardia (Dalmoro, 2019Dalmoro, I. C. (2019). Educação Ambiental e o desdobramento do poder ubuesco: uma análise foucaultiana. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências). Instituto de Ciências Básicas da Saúde, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.). Nas cenas apresentadas, por conta do tom sarcástico e grosseiro, suas falas carregam um humor caricato, dotado de uma ironia que faz rir ao mesmo tempo em que incomoda, agride e ofende. Nisso, Ubu se desqualifica enquanto Rei e, por conta dessa desqualificação, demora-se no poder: poder nas mãos de alguém efetivamente desqualificado para tanto, como Nero ou Hitler (Foucault, 2010aFoucault, M. (2010a). Os Anormais. Curso no Collègge de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes .).

A aproximação da obra de Jarry (2021Jarry, A. (2021). Ubu Rei ou Os poloneses. São Paulo: Ubu Editora.) com a perspectiva filosófica de Foucault (2010aFoucault, M. (2010a). Os Anormais. Curso no Collègge de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes .) acontece pelo uso do adjetivo ubuesco para um modo de dizer o poder. Ubu instala o que Foucault (2010a) descreve como terror ubuesco, princípio essencial à soberania grotesca infame, arbitrária, pela qual o governante não esconde o que realiza, pois sabe que o governado não ignora a circunstância. Na medida em que esse último não ignora a ocorrência assinalada pelo princípio do terror, “as coisas não se mexem [...] a verdade [...] imobiliza” (Foucault, 2014aFoucault, M. (2014a). Do governo dos vivos. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes., p. 16). Imobilização que impossibilita respostas racionais a qualquer situação com as características ubuescas mencionadas. Para além dessa imobilização, nos deparamos com o desafio principal do exame do discurso que se vale do poder ubuesco: como combatê-lo? Segundo Leme (2018Leme, J. L. C. (2018). O poder ubuesco e o meio riso. In: Resende, H. (Org.). Michel Foucault: o ronco surdo da batalha. São Paulo: Intermeios ; Brasília: Capes, 177 - 185.), tanto o ubuesco como o grotesco, sua variante, são mecanismos do poder, engrenagens que servem à despolitização e à exasperação, uma vez que por tais mecanismos transitam a autodesqualificação do governante e o desespero dos governados. Nesses casos, “O que fazer? Foucault sugere-nos um meio riso”, responde Leme (2018Gomes, S. F., Penna, J. C. B. O., & Arroio, A. (2020). Fake News Científicas: Percepção, Persuasão e Letramento. Revista Ciência & Educação, 26, 1-13. https://www.scielo.br/j/ciedu/a/bW5YKH7YdQ5yZwkJY5LjTts/
https://www.scielo.br/j/ciedu/a/bW5YKH7Y...
, p. 185).

No exame realizado acerca da emergência de um poder de normalização, Foucault (2010aFoucault, M. (2010a). Os Anormais. Curso no Collègge de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes .) apresenta contornos do poder ubuesco, cuja caracterização se dá a partir das leituras dos relatórios elaborados por peritos envolvendo exames psiquiátricos tocantes à matéria penal. Esses relatórios expõem um entrelaçamento entre os saberes médicos ou científicos em geral e os saberes dos tribunais, com descrições que remetem ao grotesco, ao ubuesco. Ainda, quando entrelaçados, esses saberes assumem uma posição de cientificidade e integram o discurso que guarda, ao mesmo tempo, três propriedades, a saber: i) poder de verdade, uma vez que oriundo da instituição judiciária e formulado por pessoas qualificadas possui estatuto científico, ii) poder de vida e de morte, pois pode determinar a liberdade ou a detenção de um indivíduo - em alguns casos, de acordo com a decisão de justiça, pode inclusive levá-lo à morte, e iii) poder de fazer rir - um riso irônico, procedente de um humor sarcástico, por conta das expressões grotescas utilizadas nos relatórios dos peritos psiquiátricos em matéria penal. Esse jogo de relações mostra o ubuesco como uma das engrenagens que fazem parte dos mecanismos de poder, uma mecânica ubuesca do poder. Em suas palavras:

[...] Chamarei de “grotesco” o fato, para um discurso ou para um indivíduo, de deter por estatuto efeitos de poder de que sua qualidade intrínseca deveria privá-los. O grotesco ou, se quiserem, o “ubuesco” não é simplesmente uma categoria de injúrias, não é um epíteto injurioso, e eu não queria empregá-lo nesse sentido. Creio que existe uma categoria precisa; em todo caso, dever-se-ia definir uma categoria precisa da análise histórico-política, que seria a categoria do grotesco ou do ubuesco. [...]. (Foucault, 2010aFoucault, M. (2010a). Os Anormais. Curso no Collègge de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes ., p. 11, grifos do autor).

Para o autor, o poder ubuesco integra a engrenagem grotesca na mecânica do poder e está presente no funcionamento político desde muito tempo na história das sociedades pelo qual decorre a “maximização dos efeitos do poder a partir da desqualificação de quem os produz” (Foucault, 2010aFoucault, M. (2010a). Os Anormais. Curso no Collègge de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes ., p. 11), a despeito do estilo grotesco e caricaturesco de quem o exerce. Esse efeito de desqualificação ocorre pela manifestação voluntária do poder como algo odioso, infame ou ridículo tanto no discurso como no indivíduo que detém estatuto de poder. Um poder que “se manifesta como desrazão”, segundo Leme (2011aLeme, J. L. C. (2011a). A crise da governamentalidade e o poder ubuesco. In: Albuquerque Júnior, D. M., Veiga-Neto, A., & Souza Filho, A. (Org.). Cartografias de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 184 - 197., p. 197).

Além de Pai e Rei, Ubu também se apresenta como Doutor em ‘Patafísica. Mais que isso, em duas peças que contam de Ubu, ele atribui a si a invenção, por conta da necessidade, da ciência de soluções imaginárias - a ‘Patafísica. Em linhas gerais, a ‘Patafísica é descrita como uma ciência que examina as exceções no próprio interior da ciência, fazendo com que essa pense sobre si mesma não para completá-la, mas para desequilibrá-la. Acerca dessa invenção jarryniana, detalhes são apresentados mais adiante. Por ora, cabe dizer que examinar exceções também é examinar anormalidades, desse modo temos outro elo que possibilita aproximações entre as escritas de Foucault (2010aFoucault, M. (2010a). Os Anormais. Curso no Collègge de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes .) e Jarry (1996Jarry, A. (1996). Exploits & Opinions of Dr. Faustroll, pataphysician: a neo-scientific novel. Translated & annotated By Simon Watson Taylor. Boston: Exact Change.; 2021Jarry, A. (2021). Ubu Rei ou Os poloneses. São Paulo: Ubu Editora.).

Dito isso, apresentamos a divisão do presente artigo. Seguindo essa Introdução, abrimos uma seção para descrição do procedimento metodológico utilizado no estudo, relatando sobre as noções de arquivo e arquivização. Ainda nessa seção, tratamos sobre o tensionamento do poder ubuesco em imaginação ubuesca. Por fim, a partir do exame das práticas discursivas escolhidas discorremos sobre uma possível aproximação entre a ‘Patafísica e uma neociência ubuesca, descrevendo a primeira e inventando a segunda.

PROCEDIMENTO METODOLÓGICO

A pesquisa trata da problematização das práticas discursivas situadas em regiões de cientificidade reinventando conceitos das áreas da ciência, filosofia e artes, com ênfase na literatura. Nessa criação de conceitos fornecemos pistas para compreensão dos desafios para a ciência e para a educação em ciências no cenário da pandemia da COVID-19 - recentemente vivenciado -, que podem desenvolver a criatividade e potencializar tanto uma como a outra, trabalhando conceitos científicos conectados com a contemporaneidade.

Como procedimento metodológico do estudo optamos pela “arquivização” - junção dos termos arquivo e imaginação -, procedimento criado por Aquino (2019Aquino, J. G. (2019). Educação pelo arquivo: ensinar, pesquisar e escrever com Foucault. São Paulo: Intermeios.) sob inspiração da noção foucaultiana de arquivo. O autor sugere um deslocamento da caracterização de arquivo daquelas apresentadas por Foucault (2020Foucault, M. (2020). A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária.; 2010aFoucault, M. (2010a). Os Anormais. Curso no Collègge de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes .), por conta da emergência e da força das pesquisas pós-críticas. A proposta de Aquino (2019Aquino, J. G. (2019). Educação pelo arquivo: ensinar, pesquisar e escrever com Foucault. São Paulo: Intermeios.) envolve pensar processos investigativos educacionais com teorizações foucaultianas. Ou seja, é sobre a ideia de arquivo para além daquelas que Foucault descreveu que Aquino (2019Aquino, J. G. (2019). Educação pelo arquivo: ensinar, pesquisar e escrever com Foucault. São Paulo: Intermeios.) apresenta a arquivização. Considera ainda que esse deslocamento é impulsionado pela imaginação recriadora. Assim, buscamos com esses pensadores, a partir do modo como lidam com arquivo, examinar a composição de narrativas com o intuito de pensar janelas que se abrem para especulações imaginárias na invenção de uma neociência. Dessa forma, operamos com a imaginação em via dupla: ora a temos como noção estudada, ora como parte da trama que compõe o procedimento metodológico adotado. Ao juntar a imaginação recriadora com arquivo, possibilitando a arquivização, encontramos na proposta de Aquino (2019Aquino, J. G. (2019). Educação pelo arquivo: ensinar, pesquisar e escrever com Foucault. São Paulo: Intermeios.) um vetor potente de um elo patafísico por se tratar de uma investigação acerca da possibilidade de uma neociência que tem como base de construção a ciência de soluções imaginárias pensada por Jarry (1996Jarry, A. (1996). Exploits & Opinions of Dr. Faustroll, pataphysician: a neo-scientific novel. Translated & annotated By Simon Watson Taylor. Boston: Exact Change.; 2021Jarry, A. (2021). Ubu Rei ou Os poloneses. São Paulo: Ubu Editora.).

Compreendemos como significação para as “regiões de cientificidade” as regiões heterogêneas pertinentes às práticas discursivas em suas variantes e que respondam a critérios formais de cientificidade. Ou seja, as relacionamos com conjuntos discursivos reconhecidos pela pretensão científica que se articulam como sistemas de formação de um saber com objetos, linguagem e conceitos; se delineiam no âmbito científico; e, de algum modo, produzem efeitos de verdade, ou seja, moldam nossos modos de vida. De acordo com Machado (2007Machado, R. (2007). Foucault, a ciência e o saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar.), n’Arqueologia do saber (1969) - obra foucaultiana que nos impulsiona a utilizar essa expressão - o pensador centra sua análise sobre a constituição histórica das “ciências do homem” na modernidade, compondo assim “uma nova região” (Machado, 2007Machado, R. (2007). Foucault, a ciência e o saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar., p. 9). Nesse fluxo, escolhemos como modelo de região de cientificidade a ser averiguado a própria vida em sua humanidade categórica: a morte como possibilidade tangível. Assim, examinamos práticas discursivas em suas relações de poder e verdade com o campo da cientificidade que, em conjunto, buscam assegurar a vida - práticas que visam ancorar o direito à própria vida, tornando-a resistente diante de um contexto de aproximação com a morte.

É diante da pandemia da COVID-19, acompanhada de incertezas, que lançamos nosso olhar para elementos que se mostram como práticas discursivas em região de cientificidade, tais como: enunciações e pesquisas em torno de uma vacina com validação eficiente, campanhas para vacinação da população brasileira e discursos acerca de outras possibilidades para controle e, quiçá, erradicação da doença que assusta o mundo desde dezembro de 2019 - elementos desafiantes para a ciência. Vale ressaltar que o procedimento metodológico utilizado para trabalhar com essa região de cientificidade tem como propósito neste trabalho fundamentar o conceito de neociência; além disso, ele pode ser utilizado tanto no campo da ética como na área da educação em ciências visando avaliar qualitativamente de que modo a ciência é apreendida pelos sujeitos, observando e analisando produções para além de uma única área de conhecimento. Desse modo, o procedimento metodológico da pesquisa inspirado na arquivização procura articular possibilidades curriculares na educação em ciências, promovendo aberturas para as soluções imaginárias que ocorrem dentro do campo científico, sem esgotar outros modos de abordagem e análise às práticas discursivas em torno da pandemia que visam compreender como elas produzem subjetividades.

Nesse cenário, no qual lidamos com a gestão e controle sobre a vida - e sobre a morte -, entra em jogo a noção foucaultiana da biopolítica. Para o autor, “[...] a biopolítica lida com a população, e a população como problema político, como problema a um só tempo científico e político, como problema biológico e como problema de poder” (Foucault, 2010bFoucault, M. (2010b). Em defesa da sociedade. Curso no Collègge de France (1975-1976). 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes., p. 206). Nisso, encontramos outro instrumento de apoio para uma análise que se volta para a invenção da vida sociopolítica contemporânea, num ambiente em que a vida e a morte são tratadas como ferramentas políticas no jogo que rege as relações de poder no campo da governança das populações.

Examinar as “práticas discursivas” na região de cientificidade implica, num modo geral, pesquisar o “conjunto das maneiras de fazer mais ou menos regradas, mais ou menos pensadas, mais ou menos acabadas através das quais se delineia simultaneamente o real”, segundo Foucault (2017, p. 232). Consideramos, nessas condições, estudar as práticas concebidas como modos de agir e de pensar que proporcionam a inteligibilidade do sujeito e do objeto, ou seja, o modo como o indivíduo se manifesta e age como sujeito do conhecimento. Nesse caso, investigamos práticas discursivas que viabilizam um saber, naquilo que tal saber assume status e papel de ciência, de acordo com suas regularidades, articulações de processos, relações, desvios e figuras que possibilitam-na atingir certo grau de cientificidade.

Além disso, tais práticas discursivas emergem como um corpus heterogêneo de análise para especularmos sobre uma neociência num cenário que se encontra em estado de alerta - o corpus envolve, portanto, discursos que circularam no Brasil entre os anos de 2020 e 2022. Nessa lógica, nos ocupamos com estudos diversos referentes à COVID-19, como sites de notícias, revistas de cunho científico e livros sobre o assunto. São materiais referenciados e arquivados, pelos quais as práticas discursivas mais circularam ou foram publicizadas no recorte de tempo escolhido. São estudos que se apoiam uns nos outros e oferecem condições de possibilidade para a criação de um conceito, representando lugares híbridos que incluem também artigos elaborados a partir de pesquisas no campo da ciência e da educação em ciências que problematizam discursos sobre a ciência e anticiência envolvendo mídias sociais. Essas pesquisas, sob forma de artigos, tratam de temas considerados pseudocientíficos ou não, e por vezes discutem os seus possíveis efeitos nos campos mencionados. Para tanto, dos materiais arquivados, selecionamos para esse texto 7 artigos que abordam a ciência e a educação em ciências, oriundos de estudos publicados que problematizam os efeitos da proliferação de discursos envolvendo a desinformação e que, de algum modo, problematizam a ciência e impulsionam a anticiência em meios como as mídias sociais. Esses artigos atendem aos critérios de inclusão no arquivo pois dão atenção às práticas discursivas evidenciadas na pandemia da COVID-19 e abrangem, além do campo científico, elementos que se aproximam a uma imaginação grotesca, ubuesca. São publicações relevantes que permitem também trazer à tona contribuições de pesquisadores para o exame dos discursos que desqualificam a ciência como também depreciam a pesquisa científica. Nesse sentido, ao trazer para as problematizações as práticas discursivas analisadas buscamos fortalecer a atenção que devemos dar à ciência e sua crítica e ao negacionismo científico que a ronda na atualidade.

Entendemos que buscar em artigos publicados - e não nas gravações ou manifestações em redes sociais - também é valorizar a pesquisa científica que analisou discursos que produziram/produzem modos de vida, constituindo sujeitos e currículos. Para tanto, aplicamos inicialmente os seguintes descritores: “pandemia”, “desinformação”, “fake news”, “Jair Bolsonaro”, “ciência” e “educação em ciências”. Tais descritores são utilizados por conta das práticas discursivas grotescas emergentes no período pandêmico ambientadas em relações da ciência e que, de algum modo, mobilizam a comunidade científica e a população brasileira. Consideramos que são elementos que merecem ser examinados, pois desafiam o pensamento e as palavras.

Quadro 1
Inventário da Arquivização

Posto isso, a seguir apresentamos uma breve descrição das noções de arquivo para Foucault (2020Foucault, M. (2020). A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária., 2015Foucault, M. (2010a). Os Anormais. Curso no Collègge de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes ., 2014bFoucault, M. (2010b). Em defesa da sociedade. Curso no Collègge de France (1975-1976). 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes.), e da arquivização como procedimento de pesquisa educacional, segundo Aquino (2019Aquino, J. G. (2019). Educação pelo arquivo: ensinar, pesquisar e escrever com Foucault. São Paulo: Intermeios.).

ARQUIVO E ARQUIVIZAÇÃO

Um sentido inicial para arquivo, dentre outros apresentados, é o proposto por Foucault (2020Foucault, M. (2020). A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária.) na obra A Arqueologia do Saber (1969), sendo descrito como um sistema de funcionamento das coisas ditas para que essas “não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa” (Foucault, 2020Foucault, M. (2020). A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 158). De modo a evitar uma fixidez dessa massa horrenda, como práticas discursivas mortas e empoeiradas, Foucault (2020Foucault, M. (2020). A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária.) propõe um sistema de funcionamento para a examinação das coisas ditas, de modo que possam se agrupar de tal maneira que, compondo-se umas com as outras, variem de acordo com suas próprias regularidades. Nesse movimento, no que parece um convite a ensaiar a imaginação, sugere arquivo, numa parecença com as estrelas, como aquilo que impulsiona às coisas ditas brilharem umas mais que as outras, possibilitando a essas se chegarem a nós. Dessa maneira, no reluzir, tornar visível aquilo que está na invisibilidade meramente por estar na intensidade da superfície. Ao reluzirem, permitir que se atualizem, se transformem, sem esgotarem as próprias possibilidades numa linearidade.

Ao descrever arquivo relacionando-o com as estrelas, Foucault sugere que a região privilegiada para tanto é “a orla do tempo que cerca nosso presente”, conforme Leme (2011bLeme, J. L. C. (2011b). Da significação ao acontecimento: Foucault e a genealogia da experiência. In: Resende, H. (Org.). Michel Foucault: transversais entre educação, filosofia e história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 91 -104., p. 100). Ou seja, tal região é ao mesmo tempo a que mais se aproxima e a que mais se diferencia da nossa atualidade. Nesse sentido, abarca os discursos que são nossos ainda e que nos delimitam, mas que começam a perder sua evidência, onde as estrelas começam a empalidecer. Foucault (2014bFoucault, M. (2010b). Em defesa da sociedade. Curso no Collègge de France (1975-1976). 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes.) destaca que o jogo de palavras que usou para a designação de arquivo n’Arqueologia do Saber (1969) não envolve trazer à tona uma massa de textos históricos sobre o passado: envolve a análise daquilo que torna possível o funcionamento e a transformação da prática discursiva. Assim, arquivo pode ser descrito como:

[...] a massa das coisas ditas em uma cultura, conservadas, valorizadas, reutilizadas, repetidas e transformadas. [...] o arquivo aparece, então, como uma espécie de grande prática dos discursos, prática que tem suas regras, suas condições, seu funcionamento e seus efeitos. (Foucault, 2014bFoucault, M. (2014b). Ditos e Escritos X: Filosofia, Diagnóstico do Presente e Verdade. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 52).

Relacionamos “coisas ditas” com as práticas discursivas que dizem respeito não somente aos atos de falas ou escritos, mas como aquelas coisas que descrevem a nossa relação com o mundo, pelo modo como o compreendemos e como falamos dele, relembrando Veiga-Neto (2016Veiga-Neto, A. (2016). Foucault & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora.). Assim, lidamos com práticas discursivas múltiplas, multiplicadas e multiplicantes. Múltiplas porque são movidas pelas variações, multiplicadas a partir das descrições de suas invisibilidades e multiplicantes por conta da potencialidade de seus efeitos. Nessa “multiplicação dos discursos” um lugar para a “multiplicação dos sujeitos”, conforme Fischer (2001Fischer, R. M. B. (2001). Foucault e a análise do discurso em educação. Cadernos de Pesquisa[online] 114, 197 - 223. https://doi.org/10.1590/S0100-15742001000300009.
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).

Tratando ainda o arquivo como um conjunto em funcionamento, outra significação é proposta por Revel (2011Revel, J. (2011). Dicionário Foucault. Rio de Janeiro: Forense Universitária.), ao sugerir uma mudança de status no sentido do termo, baseada em um comentário de Foucault sobre trabalhos realizados junto com historiadores (com Pierre Riviére, em 1973; L’impossible prision, sob a direção de Michelle Perrot, em 1978; ou com Arlette Farge em Le Désordre des Familles, em 1982). A mudança que Revel (2011) destaca encontra-se no texto A vida dos homens infames (1977), no qual Foucault (2015) explica sobre a exumação de manuscritos para a composição de uma antologia baseada em poemas escritos por soldados desertores, vendedoras de roupas de segunda mão, tabeliães e monges vagabundos. Tais manuscritos provêm de uma mesma fonte: arquivos de internamento, da polícia, das petições ao rei e das cartas régias com ordem de prisão, com datas entre 1660-1670 (Foucault, 2015Foucault, M. (2015). Ditos e Escritos IV: Estratégia, Poder-Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária.). Nesse comentário, ao discorrer sobre os materiais analisados, o autor elenca suas escolhas tendo como regra mais importante o gosto. Para amparar a tal escolha, traz outros sentimentos à tona, assinalando afetações:

[...] A escolha que nele se encontrará não seguiu outra regra mais importante do que meu gosto, meu prazer, uma emoção, o riso, a surpresa, um certo assombro ou qualquer sentimento, do qual teria dificuldades, talvez, em justificar a intensidade, agora que o primeiro momento da descoberta passou. (Foucault, 2015Foucault, M. (2015). Ditos e Escritos IV: Estratégia, Poder-Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 199).

A composição narrativa realizada a partir do arquivo de imagens do documentário No Intenso Agora (2017), do roteirista, produtor e diretor de cinema João Moreira Salles, impulsiona Aquino (2019Aquino, J. G. (2019). Educação pelo arquivo: ensinar, pesquisar e escrever com Foucault. São Paulo: Intermeios.) a pensar na arquivização como procedimento de pesquisa educacional. Destaca que é no movimento de documentarizar os materiais utilizados que entra a ação do documentarista associada ao trabalho do pesquisador. Resultam das duas funções - documentar e pesquisar - recriações das realidades daquilo que foi documentado, já que tratam de “uma recomposição tradutória, jamais uma transposição automática, de um conjunto de acontecimentos verídicos” (Aquino, 2019Aquino, J. G. (2019). Educação pelo arquivo: ensinar, pesquisar e escrever com Foucault. São Paulo: Intermeios., p. 109), ou seja, envolvem realidades imaginadas a partir das leituras de seus arquivistas.

Seguindo a perspectiva foucaultiana, Aquino (2019Aquino, J. G. (2019). Educação pelo arquivo: ensinar, pesquisar e escrever com Foucault. São Paulo: Intermeios.) descreve arquivo como uma sistematização textual que faz com que as coisas ditas tenham surgido a partir de “um jogo de relações e de regularidades específicas que caracterizam o nível discursivo” (Aquino, 2019, Aquino, J. G. (2019). Educação pelo arquivo: ensinar, pesquisar e escrever com Foucault. São Paulo: Intermeios.p. 107). Desse modo, cabe pensar o arquivo a partir de relações específicas articuladas a outras práticas colocando-o numa esteira de recomposição infinita, possibilitando a um mesmo arquivo várias configurações, tomadas de acordo com os problemas e as grades de leitura do pesquisador. Caracteriza a arquivização como um procedimento investigativo que favorece encontros que superam análises de materiais históricos. Pensa nela como dotada de “potências ativas na qualidade de pontos de inflexão que mobilizam e produzem ressonâncias, dada sua capacidade de produzirem desvio” (Aquino, 2019Aquino, J. G. (2019). Educação pelo arquivo: ensinar, pesquisar e escrever com Foucault. São Paulo: Intermeios., p. 113). Cabe ao investigador, na tarefa arquivística, manusear seu arquivo, mapear encontros e afastamentos das coisas que comporta, interrogar suas fontes, encontrar brechas que possibilitem o desvio, o imaginário.

Outra significação para arquivo é apresentada por Farge (2017Farge, A. (2017). O sabor do arquivo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.). Na descrição da autora, arquivo é tomado como “[...] uma brecha temporal no tecido dos dias” (Farge, 2017Farge, A. (2017). O sabor do arquivo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo., p. 14). Nesse território, adentrar por tal brecha pode provocar a desconstrução tanto das certezas garantidas como dos saberes dominantes (Aquino, 2019Aquino, J. G. (2019). Educação pelo arquivo: ensinar, pesquisar e escrever com Foucault. São Paulo: Intermeios.). Ainda, insinuar-se por essa brecha traz a compreensão de que o arquivo é examinado sob um ponto de vista e o resultante desse estudo emergirá pelo modo como se lida com o entrelaçamento de suas tramas e possíveis relações com a atualidade. Soma-se a isso o enfoque dado pelos pesquisadores, as afetações, as emoções, reconhecendo que “[...] quem tem o sabor do arquivo procura arrancar um sentido adicional dos fragmentos de frases encontradas; a emoção é instrumento a mais para polir a pedra, a do passado, a do silêncio” (Farge, 2017Farge, A. (2017). O sabor do arquivo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo., p. 37). Assim, trabalhar com arquivo é se deixar inundar por ele.

No modo de pesquisa que envolve examinar o próprio arquivo, nos voltamos para a obra que menciona o poder ubuesco: Os Anormais (1974-1975). Para além do estudo do indivíduo delinquente, embasado pela análise das transformações do exame psiquiátrico em matéria penal até a sua descrição diagnosticada - a anormalidade -, Foucault (2010aFoucault, M. (2010a). Os Anormais. Curso no Collègge de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes .) ocupa-se do poder de normalização e a formação de um saber: a psiquiatria como ciência das condutas normais e anormais. Uma vez que, a partir do diagnóstico e da medicalização do anormal, a psiquiatria toma para si a função de proteger a sociedade desse indivíduo.

Ao longo da obra, noções pertinentes às regiões de cientificidade são mencionadas. Uma delas é a expressão fabulação científica - da doença total - utilizada por Foucault (2010aFoucault, M. (2010a). Os Anormais. Curso no Collègge de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes .) ao examinar um texto de cunho científico que trata sobre a masturbação infantil como causa de todas as doenças possíveis, uma literatura conforme as “normas de cientificidade do discurso médico da época” (Foucault, 2010aFoucault, M. (2010a). Os Anormais. Curso no Collègge de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes ., p. 207). A partir da problematização da sexualidade da criança e do exame sobre o distúrbio do instinto sexual vem à tona outro elemento relacionado às regiões de cientificidade, a imaginação - aqui pensada como complementar à ciência, que “inventa mente nova; abre novos olhos que têm novos tipos de visão”, segundo Bachelard (2018Bachelard, G. (2018). A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes., p. 18): imaginação criadora que impulsiona a ciência.

Dentre as eventuais nuances da imaginação humana, dentre as possibilidades pelas quais pode ser dita como anormal, científica, material, formal, cósmica, amarrada, penetrante, dissimulada, vadia, zombeteira, divertida e mórbida, caracterizadas sob inspiração foucaultiana, especulamos sobre a imaginação nas descrições grotescas lidas e comentadas por Foucault (2010aFoucault, M. (2010a). Os Anormais. Curso no Collègge de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes .) ao longo das aulas que compõem a obra Os Anormais (1974-1975). Numa das tantas possibilidades para imaginação, Foucault (2010aFoucault, M. (2010a). Os Anormais. Curso no Collègge de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes .) analisa a imaginação mórbida e o instinto sexual, a partir da leitura e comentário sobre casos descritos por Heinrich Kaan em seu tratado Psychopathia sexualys (1844), para quem “[...] a imaginação prepara o caminho para todas as aberrações sexuais” (Foucault, 2010aFoucault, M. (2010a). Os Anormais. Curso no Collègge de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes ., p. 245). Aberrações sexuais que envolvem desde a masturbação, pederastia, amor dos indivíduos - homens ou mulheres -, por seu próprio sexo, violação de cadáveres e a “gravíssima e que o perturba [Kaan] muito, que consiste em fazer amor com estátuas” (idem). Aberrações que tem como fator desviante a imaginação mórbida que “[...] animada por desejos prematuros, vai procurar os meios anexos, derivados, substitutivos de se satisfazer” (idem). Nas associações fantasiosas, uma imaginação anormal. Descrições como as acima mencionadas são exemplos das tantas que aparecem longo do estudo da problemática da anormalidade, são descrições compatíveis a uma imaginação que lida com o grotesco, possibilitando pensar numa imaginação ubuesca. Imaginação que se multiplica num vocabulário irônico que perambula nos limiares da cientificidade.

‘PATAFÍSICA: A CIÊNCIA DE SOLUÇÕES IMAGINÁRIAS

Definida por Jarry (1996Jarry, A. (1996). Exploits & Opinions of Dr. Faustroll, pataphysician: a neo-scientific novel. Translated & annotated By Simon Watson Taylor. Boston: Exact Change., p. 21-22) como “a ciência de soluções imaginárias, que atribui simbolicamente às propriedades dos objetos, descritos por sua virtualidade, os seus contornos”, da ‘Patafísica pode ser dito que se trata de um saber que questiona os conhecimentos científicos aceitos como universais, generalizáveis, úteis e aplicados.

Nessa direção, a ‘Patafísica propõe que voltemos nossa atenção para os detalhes, para as anormalidades, ou seja, para aqueles detalhes que parecem invisíveis, mas que assim parecem por estarem na intensidade da superfície. Mais, a ‘Patafísica nos devolve à imaginação na ciência, já tão permeada de metodologias e academicismos. Buscar um sentido último para a ciência de soluções imaginárias é demorar-se numa especulação que gira sobre si mesma. Nesse sentido, não é algo que se defina pois, segundo Cunha (2019Cunha, G. T. F. Corrêa da. (2019). Uma Educação do sentido: Poéticas textuais. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.), suas variantes escapam ao exercício da definição. O que reconhecemos é que a ‘Patafísica inventa a partir de outras criações, que busca as exceções que constituem a ciência, desmistifica os pensamentos únicos e entrega à imaginação temas científicos, filosóficos e esotéricos (Fux, 2016Fux, J. (2016). Literatura e Matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o Oulipo. São Paulo: Perspectiva.). A ‘Patafísica toma a ciência como objeto e nesse movimento a faz pensar sobre si mesma. Nesse movimento, desconcentra saberes dominantes e desconstrói para construir e, no processo construção, interroga discursos da esfera científica que perambulam no mundo ordinário e provoca soluções imaginárias para problemas inexistentes. Nesse sentido, um campo de possibilidades se abre a esse estudo que visa examinar frestas de discursos que lançam mão de soluções imaginárias situadas na região de cientificidade com características patafísicas. Frestas que muitas vezes tomam a forma de polêmicas inimagináveis e que por conta do humor ubuesco que carregam se configuram como soluções imaginárias ubuescas.

Outrossim, o discurso patafísico “oferece uma visão paralela das coisas, muitas vezes lúdica e divertida, mas que coloca em pauta alguns fundamentos enraizados em todos os campos científicos”, de acordo com Fux (2016Fux, J. (2016). Literatura e Matemática: Jorge Luis Borges, Georges Perec e o Oulipo. São Paulo: Perspectiva., p. 44). Fundamentos considerados como ideias científicas impulsionadas por soluções ditas como verdades numa linearidade coerente. Desse modo, em busca do sentido contrário ao dito natural, investimos nas exceções, nas anormalidades e nas anomalias. Numa aproximação com Foucault (2010aFoucault, M. (2010a). Os Anormais. Curso no Collègge de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes .), atiçamos nossa curiosidade e acomodamos aberturas à imaginação no exame das práticas discursivas em torno de ideias feitas na região de cientificidade da própria vida - especificamente, no que toca a pandemia da COVID-19.

ESPECULAÇÕES SOBRE A NEOCIÊNCIA UBUESCA

Num cenário de inquietações e incertezas, o novo coronavírus desencadeou mudanças rigorosas em nossos cotidianos, pois compreendemos na prática o conceito de pandemia e, por conseguinte, passamos a discutir sobre o desenvolvimento da ciência, sobre o uso de máscaras para a nossa proteção e de quem está próximo, como também passamos a “entender” da criação e validação de vacinas. Lidamos também com as declarações do representante oficial do país à época que vão desde a consideração da COVID-19 como “histeria”, “fantasia” até ser tratada como “uma gripezinha ou nada”. O novo coronavírus foi subestimado enquanto contabilizávamos nossos mortos e o apelo do então mandatário era para que deixássemos de ser um “país de maricas” (“Relembre o que Bolsonaro já disse”, 2021Relembre o que Bolsonaro já disse sobre a pandemia, de gripezinha e país de maricas, a frescura e mimimi. (2021, 17 de maio). Folha de S. Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/03/relembre-o-que-bolsonaro-ja-disse-sobre-a-pandemia-de-gripezinha-e-pais-de-maricas-a-frescura-e-mimimi.shtml
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021...
). Além disso, em meio a um momento científico em discussão, o vírus que nos atingiu trouxe junto a proliferação de práticas discursivas em torno da vida e da morte envolvendo a ciência e a anticiência muitas vezes permeadas pela desinformação. Anticiência compreendida como aquela que nega qualquer validade do pensamento científico, intentando assim a desqualificação da ciência - o que pode ser observado nos excertos citados nesta seção.

No artigo Como enfrentar a desinformação científica? Desafios sociais, políticos e jurídicos intensificados no contexto da pandemia, publicado na Liinc em Revista, Oliveira (2020) problematiza a ocupação do espaço digital na disseminação de narrativas sobre a ciência. Nesse fluxo, estão envolvidos desde as instituições científicas, cientistas e divulgadores da ciência, além de políticos, organizações governamentais e não-governamentais. Ao trazer o conceito de desinformação para o campo científico, ressalta que “outros elementos são incorporados ao discurso de legitimação de si” (Oliveira, 2020, p. 6). Ganham espaço com a desinformação teorias da conspiração relacionadas à ciência, causando preocupação na comunidade científica em geral, como o movimento antivacina, uma vez que manifestantes desse grupo afirmam que as vacinas são utilizadas para implantação de microchips nas pessoas, ou ainda que elas matarão milhões de pessoas. Nesse contexto, reafirma: “identificar os discursos em torno das teorias da conspiração neste momento de pandemia nos apresenta importantes pistas para refletir sobre nós mesmos, cientistas e membros das instituições científicas” (Oliveira, 2020, p. 8).

No artigo A desinformação no Brasil durante a pandemia de Covid-19: temas, plataformas e atores, publicado na Revista Fronteiras: estudos midiáticos, as autoras Gehrke e Benetti (2021Gehrke, M., & Benetti, M. (2021). A desinformação no Brasil durante a pandemia de COVID-19: temas, plataformas e autores. Revista Fronteiras - estudos midiáticos, 23(2) 144 -18. https://revistas.unisinos.br/index.php/fronteiras/article/view/22527
https://revistas.unisinos.br/index.php/f...
) apresentam o resultado de um mapeamento que buscou identificar e descrever os tópicos de maior circulação em meio ao conteúdo falso relacionado à pandemia - um cenário propício para a desinformação e disseminação de boatos. Para tanto, examinaram plataformas digitais nas quais esse tipo de conteúdo foi compartilhado (Facebook, Twitter, Youtube, Instagram, WhatsApp), e se ocupam das informações disponibilizadas pelas agências de checagem de tais sites ou redes sociais. Destacamos:

Os conteúdos mentirosos dizem que é possível se prevenir do vírus ou até mesmo eliminá-lo com o uso de água quente ou morna (pura, com “oito dentes de alho picados”, “fatias de limão em um copo de água morna”, “sempre manter a garganta úmida”, “evite beber água gelada”, chás (boldo, erva-doce), alimentos (alho, limão, laranja, melão, acerola, abacate, manga, abacaxi, fígado de boi) e condimentos (sal e vinagre, pimenta, mel e gengibre). Também mudanças de comportamento poderiam tornar as pessoas imunes ou matar o vírus: bastaria tomar sol, tirar a barba ou jogar água sanitária nos ralos. (Gehrke & Benetti, 2021Gehrke, M., & Benetti, M. (2021). A desinformação no Brasil durante a pandemia de COVID-19: temas, plataformas e autores. Revista Fronteiras - estudos midiáticos, 23(2) 144 -18. https://revistas.unisinos.br/index.php/fronteiras/article/view/22527
https://revistas.unisinos.br/index.php/f...
, p. 20, grifos das autoras).

No que tange ao uso de máscaras, de álcool gel, e chineses, recortamos do artigo práticas discursivas que remetem à imaginação ubuesca, mantendo a escrita conforme selecionado pelas autoras: “O uso prolongado da máscara produz hipóxia”; “O uso da máscara torna o sangue ácido”; “O álcool gel utilizado na assepcia (sic) do coronavírus pode influenciar no teste do bafômetro”; “China exportou máscaras com covid”; “URGENTE!!! Máscaras contaminadas serão distribuídas com intenção do plano do Comunismo!!!” (Gehrke & Benetti, 2021Gehrke, M., & Benetti, M. (2021). A desinformação no Brasil durante a pandemia de COVID-19: temas, plataformas e autores. Revista Fronteiras - estudos midiáticos, 23(2) 144 -18. https://revistas.unisinos.br/index.php/fronteiras/article/view/22527
https://revistas.unisinos.br/index.php/f...
, p. 21).

No artigo O sujeito informacional e as redes sociais online: reflexos da polarização política nas práticas informacionais relacionadas à pandemia de COVID-19, também publicado na Liinc em Revista, Goulart e Muñoz (2022) realizam uma análise dos comentários feitos em grupos públicos do Facebook entre fevereiro de 2020 - data do primeiro caso de COVID-19 no Brasil - e junho de 2021 - data que o país atinge o número de quinhentos mil óbitos decorrentes da doença. As autoras afirmam que podemos entender desinformação como conteúdos propositalmente enganosos, que tanto podem ser completamente falsos ou permeados de informações fora de contexto, fragmentadas ou distorcidas, com um traço distinto: a função de enganar, a fim de se obter vantagem, lucro ou beneficiar alguém. Como resultado, em linhas gerais, listam o preconceito manifestado contra os chineses, pois o coronavírus foi designado como “vírus chinês” e a vacina produzida na China como “vachina”, por exemplo. Sobre o que afirmam os contrários à vacinação, destacam:

Os principais argumentos usados por indivíduos contrários à imunização foram: que as vacinas não poderiam ter sido desenvolvidas tão rapidamente; que ainda estariam em fase de testes e as pessoas seriam cobaias; que os laboratórios não se responsabilizavam por efeitos colaterais; que os imunizantes provocariam um “desarranjo genético” causador de câncer nas gerações futuras. Tais alegações, não raramente, foram apresentadas como oriundas de médicos ou cientistas, profissionais supostamente “renomados” e “especialistas”. Desse modo, os defensores desses argumentos apoiam-se numa hipotética autoridade científica para desenvolver uma racionalização contrária aos imunizantes”. (Goulart & Muñoz, 2022, p. 14, grifos das autoras).

Em outro artigo, intitulado Desinformação, antivacina e políticas de morte: o mito (d)e virar jacaré, publicado na Revista Mídia e CotidianoBezerra et al. (2021Bezerra, J. S., Magno, M. E. S. P., & Maia, C. T. (2021). Desinformação, antivacina e políticas de morte: o mito (d)e virar jacaré. Revista Mídia e Cotidiano, 15(3), 15-18. https://periodicos.uff.br/midiaecotidiano/article/view/50944/30057
https://periodicos.uff.br/midiaecotidian...
) examinam a produção e circulação de discursos relativos à pandemia da COVID-19, tratando sobre aspectos da desinformação e da articulação de movimentos antivacina. Nesse artigo encontramos a transcrição da fala do ex-presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, pronunciada em um evento em 17 de dezembro de 2020, na qual menciona supostos efeitos para defender a não aplicação de uma vacina para proteção contra a doença. Repetimos:

A vacina uma vez certificada pela Anvisa vai ser extensiva a todos. Que [sic] quem não tomá-la? Eu não vou tomar. Alguns falam que eu tô [sic] dando um péssimo exemplo. Ôh, imbecil! (aplausos) O idiota que tá [sic] dizendo que eu dou um péssimo exemplo, eu já tive o vírus. Eu já tenho anticorpos. Pra que tomar vacina de novo? E outra coisa que tem que ficar bem claro aqui Dra. *** (não compreensível). Lá, na Pfizer, tá bem claro lá no contrato: nós não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral. Se você virar um chi ... jacaré, é problema de você [sic], pô! Não vou falar outro bicho, porque vou começar aqui a falar besteira aqui [sic], né? Se você virar Super-Homem, se nascer barba igual [sic] [em alguma] mulher, ou, ou, algum homem começar a falar fino, eles não têm nada a ver com isso. [...] (Bolsonaro, 2020 apud Bezerra et al., 2021Bezerra, J. S., Magno, M. E. S. P., & Maia, C. T. (2021). Desinformação, antivacina e políticas de morte: o mito (d)e virar jacaré. Revista Mídia e Cotidiano, 15(3), 15-18. https://periodicos.uff.br/midiaecotidiano/article/view/50944/30057
https://periodicos.uff.br/midiaecotidian...
, p. 16).

Dado nosso interesse voltado para práticas discursivas que lidam com o ubuesco, destacamos expressões da fala acima que remetem ao discurso do Rei Ubu (Jarry, 2021Jarry, A. (2021). Ubu Rei ou Os poloneses. São Paulo: Ubu Editora.) e que podem ser relacionadas com as descrições ubuescas relatadas por Foucault (2010aFoucault, M. (2010a). Os Anormais. Curso no Collègge de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes .). Expressões como “se você virar um chi... jacaré”, “nascer barba igual [em alguma] mulher” e “algum homem começar a falar fino”, se mostram como soluções imaginárias que caracterizam o apelo à imaginação ubuesca, a imaginação que lida com descrições grotescas no domínio científico. Enunciações ocorridas num momento em que estava em jogo a saúde da população - no limite entre a vida e a morte, pois o país contabilizava naquela data 184.786 mortos (Bezerra et al., 2021Bezerra, J. S., Magno, M. E. S. P., & Maia, C. T. (2021). Desinformação, antivacina e políticas de morte: o mito (d)e virar jacaré. Revista Mídia e Cotidiano, 15(3), 15-18. https://periodicos.uff.br/midiaecotidiano/article/view/50944/30057
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). Declaração ainda considerada sem base científica, fundamentada na desinformação e permeada por um humor grotesco, por quem, pelo cargo que ocupava, tinha também o poder de verdade. Nessa conjunção de fatores, na qual evidenciamos o poder de verdade, o poder de vida e de morte, somados ao poder de fazer rir - riso que incomoda, pela torção irônica em torno da ciência que apresenta, encontramos as características do poder ubuesco, conforme mencionou Foucault (2010a), como também reencontramos aspectos da personalidade do Rei Ubu sob a máscara do ex-presidente brasileiro. Uso da ciência de acordo com o próprio interesse, seletividade das informações e dados científicos que convém à teoria negacionista, negligência de informações refutadas são alguns dos critérios que reforçam a fabricação do discurso negacionista.

São comentários como os expostos nos recortes dos artigos que, como dissemos, se valem da imaginação ubuesca. Além disso, as falas do ex-presidente integram um contexto no qual circularam práticas discursivas grotescas recorrentes que colaboraram para desqualificar a ciência nacional, sendo grande parte dela construída nas universidades brasileiras, espaço que também foi alvo de comentários visando a desqualificação dessas instituições.

Seguindo na aplicação das ferramentas conceituais foucaultianas, agora em torno da biopolítica, tanto o negacionismo diante da gravidade da pandemia como o incentivo ao uso de medicamentos - o tal “kit covid” composto pelos medicamentos Hidroxicloroquina e Cloroquina (para tratamento de doenças como a malária e a artrite reumática) e da Ivermectina (antiparasitário) - como alternativa à vacina, medicamentos esses alvos de crítica por boa parte de cientistas por conta da ineficácia de seus efeitos para aquilo que induziam seus usos, demonstram a perversidade e o perigo postos em circulação por um “soberano desqualificado” (Foucault, 2010aFoucault, M. (2010a). Os Anormais. Curso no Collègge de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes ., p. 13). A divulgação da desinformação e a manipulação da opinião da população trilham no sentido oposto da biopolítica, “[...] uma vez que a vacinação é um dos seus dispositivos de segurança, o discurso governamental expõe suas garras soberanas e gerencia a morte” (Bezerra et al., 2021Bezerra, J. S., Magno, M. E. S. P., & Maia, C. T. (2021). Desinformação, antivacina e políticas de morte: o mito (d)e virar jacaré. Revista Mídia e Cotidiano, 15(3), 15-18. https://periodicos.uff.br/midiaecotidiano/article/view/50944/30057
https://periodicos.uff.br/midiaecotidian...
, p. 18).

Preocupações científicas, conjecturas, observações e experiências, investigações, discursos científicos com pretensão de universalidade e de neutralidade, gozando de certa objetividade, um espaço para fabricação de verdades, e comunidade científica são alguns dos ditos pertinentes ao campo da ciência. No meio disso, no cenário da crise pandêmica mundial, ruídos intentam sua desqualificação e, por conseguinte, a depreciação da pesquisa científica. Conforme Ribeiro e Costa (2022Ribeiro, E. S., & Costa, F. A. G. (2022). O método da Cartografia e a Educação em Ciências: interlocuções. Revista Ensaio 24, 1-18. https://www.scielo.br/j/epec/a/VKGH44NHVyP3pBDLwBPLgYK/?format=pdf⟨=pt
https://www.scielo.br/j/epec/a/VKGH44NHV...
), no artigo O método da Cartografia e a Educação em Ciências: interlocuções, uma possível causa para essa situação poderia ser o distanciamento das pesquisas e teorias científicas do grande público. Outra causa, segundo as autoras, passa pela educação conteudista da ciência, que não dialoga com os conhecimentos populares. Entretanto, ressaltam “[...] O que está em questão não é culpabilizar a ciência, mas implicar as maneiras vigentes de pensar e fazer ciências com o cenário de negacionismos em recrudescimento” (Ribeiro & Costa, 2022Ribeiro, E. S., & Costa, F. A. G. (2022). O método da Cartografia e a Educação em Ciências: interlocuções. Revista Ensaio 24, 1-18. https://www.scielo.br/j/epec/a/VKGH44NHVyP3pBDLwBPLgYK/?format=pdf⟨=pt
https://www.scielo.br/j/epec/a/VKGH44NHV...
, p. 3-4). Para tanto, sugerem uma reflexão sobre quais aspectos teóricos e epistemológicos da ciência necessitam de deslocamentos e afetações para a reanimação e religação com a própria vida e com outros saberes. Um deslocamento necessário para que não ocorra um descompasso entre as aulas de ciência e a realidade do aluno.

No que se refere ao negacionismo científico, Pasternak e Orsi (2021Pasternak, N., & Orsi, C. (2021). Contra a realidade: a negação da ciência, suas causas e consequências. Campinas, SP: Editora Papirus 7 Mares.) afirmam que esse acontece quando a crítica aos consensos científicos tem bases frágeis ou inexistem. Ocorre, desse modo, uma insistência nela, ainda que seus argumentos tenham sidos corrigidos ou refutados. O que há de mais grave nisso, destacam, é a conversão desse negacionismo num espetáculo, pois “[...] o negacionista, incapaz de convencer os especialistas que realmente entendem do assunto, decide censurar os fatos ou, se for incapaz de fazê-lo, acaba levando seu caso para o tribunal da opinião pública” (Pasternak & Orsi, 2021Pasternak, N., & Orsi, C. (2021). Contra a realidade: a negação da ciência, suas causas e consequências. Campinas, SP: Editora Papirus 7 Mares., p. 9). Outro estudo, intitulado Em prol do realismo científico no Ensino, os autores Arthury e Garcia (2020Arthury, L. H. M., & Garcia, J. O. (2020). Em Prol do Realismo Científico no Ensino. Revista Ciência & Educação, 26.) comentam sobre o movimento anticientífico no que envolve excesso da relativização da ciência na eficácia de vacinas, contudo, seus autores ressaltam que “[...] de modo geral, a ciência também se erige nas ruínas de suas destruições” (Arthury & Garcia, 2020, p. 4). Além desse, há o artigo Fake News científicas: percepção, persuasão e letramento (Gomes et al., 2020Gomes, S. F., Penna, J. C. B. O., & Arroio, A. (2020). Fake News Científicas: Percepção, Persuasão e Letramento. Revista Ciência & Educação, 26, 1-13. https://www.scielo.br/j/ciedu/a/bW5YKH7YdQ5yZwkJY5LjTts/
https://www.scielo.br/j/ciedu/a/bW5YKH7Y...
) que trata das fake news científicas e os possíveis efeitos de jargões de cunho científico na estrutura de notícias falsas que contribuem para a validação de um “discurso semelhante ao dos especialistas” (Gomes et al., 2020Gomes, S. F., Penna, J. C. B. O., & Arroio, A. (2020). Fake News Científicas: Percepção, Persuasão e Letramento. Revista Ciência & Educação, 26, 1-13. https://www.scielo.br/j/ciedu/a/bW5YKH7YdQ5yZwkJY5LjTts/
https://www.scielo.br/j/ciedu/a/bW5YKH7Y...
, p. 12).

No entrelaçamento das práticas discursivas acima mencionadas, evidenciadas pela composição de narrativas que produzem modos de vida e implicam na constituição de sujeitos e currículos, entendemos que tais práticas merecem atenção quando forem abordadas em sala de aula, especificamente no que se refere ao ensino da ciência. Essa discussão a respeito das práticas discursivas em sala de aula vem com a intenção de que nossos alunos coloquem em práticas os conceitos e procedimentos estudados e, com isso, entendam melhor o mundo em sua volta.

Dentre os tantos modos de conceituar ciência, pela perspectiva foucaultiana a analisamos pela via das práticas discursivas que moldam nossos modos de ser. Dessa maneira, nos interessa analisar os potenciais efeitos de tais práticas. Com isso, não pretendemos invalidar sua importância, muito menos nos colocamos como negacionistas da atividade científica, pois a entendemos como mais um conhecimento dentre tantos, como o conhecimento filosófico ou religioso. Conhecimento visto como construção humana, com um objeto construído e como um dos modos de entender o mundo. Nesse sentido, nos aproximamos das considerações apresentadas por Soares e Loguercio (2017Soares, A. C., & Loguercio, R. Q. (2017). A ciência no Universo da Folia. Curitiba: Appris.) quando defendem que as diferentes formas de pensar e falar de ciência convivem. Em suas palavras:

E de que ciência estamos falando? Da ciência que desconfia da veracidade dos fatos instituídos pelas certezas; da ciência que é realizada por homens e mulheres que possuem um conhecimento específico em biologia, química ou física; da ciência que se faz em laboratórios com procedimentos e posturas específicas e da ciência que se faz como pontos singulares em devir e que se aninham ao lado de dentro de cada sujeito/pesquisador. (Soares & Loguercio, 2017Soares, A. C., & Loguercio, R. Q. (2017). A ciência no Universo da Folia. Curitiba: Appris., p. 23-24).

Para reforçar a diversidade dos modos de dizer ciência, ela - a ciência - não se faz somente em bancadas de laboratórios, ocupando também outros espaços além delas, como as salas de aula da educação básica. Nessa direção, repetimos Candido e Loguercio (2020Candido, J., & Loguercio, R. de Q. (2020). A ciência e suas imagens: tradução, representação e criação. Policromias5, (3), 233 - 255., p. 245) quando afirmam que a ciência acontece especialmente “nas relações de saber/poder que possibilitam dizer o verdadeiro em determinadas formações históricas”. Desse modo, consideramos um compromisso do pesquisador, do cientista, atuar como um educador, promovendo questionamentos acerca dos fatos instituídos pelas certezas em espaços além do mundo acadêmico.

Machado (2007Machado, R. (2007). Foucault, a ciência e o saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar.) caracteriza a ciência como sendo “essencialmente discurso”. Ou seja, a descreve como “um conjunto de proposições articuladas sistematicamente” (Machado, 2007Machado, R. (2007). Foucault, a ciência e o saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar., p. 18). Contudo, a defende como um tipo específico de discurso, aquele que tem pretensão de verdade. Ciência como produção de verdades. Sua existência como prática discursiva, segundo Foucault (2020Foucault, M. (2020). A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 222-223), envolve o estudo de seu funcionamento diante de outras práticas, analisando as contradições, as variações e sistema de formação de seus objetos e conceitos. Assim, entender ciência como prática discursiva tem a ver com interrogar o jogo de relações com pretensões científicas, que respondam critérios formais de cientificidade, que se constituem como um discurso científico. Nesse sentido, afirma “[...] a ciência (ou o que passa por tal) localiza-se em um campo do saber e nele tem um papel, que varia conforme as diferentes formações discursivas e que se modifica de acordo com suas mutações” (Foucault, 2020Foucault, M. (2020). A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária., p. 222).

A partir das práticas discursivas analisadas, nosso lastro teórico - sob embasamento filosófico foucaultiano - vem ao encontro da linha de pesquisa, que se propõe a investigar as implicações das práticas científicas na constituição dos sujeitos e de currículos. As práticas discursivas examinadas nos fazem perceber os sintomas da sociedade atual. Dessa maneira, como educadoras da ciência e da filosofia, diagnosticando nosso presente, nos questionamos acerca dos conteúdos propostos e metodologias aplicadas nos currículos da educação em ciências pertinentes à educação básica. Questionamos o método conteudista, que beira à superficialidade e induz à “decoreba”, guiado por uma pedagogia na qual o professor apresenta-se como detentor do saber, sem aproximar o conhecimento científico da realidade do aluno. São provocações que visam impulsionar professores a reinventarem práticas pedagógicas interessantes, ao mesmo tempo se valendo da criticidade e da imaginação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De acordo com Foucault, o poder ubuesco é capaz de movimentar discursos com valor de cientificidade, produzindo efeitos de verdade. Ademais, promove a maximização dos efeitos do poder a partir da desqualificação de quem os produz. Do exercício de investigação sobre nosso arquivo alguns aspectos podem ser apresentados. Um deles é que as descrições mencionadas ao longo das aulas que compõem a obra Os Anormais (1974-1975) são descrições compatíveis a uma imaginação que lida com o ubuesco, possibilitando pensar numa imaginação ubuesca, uma imaginação que se multiplica no vocabulário sarcástico que vagueia no âmbito científico. Outro aspecto diz respeito à ‘Patafísica enquanto uma ciência que se volta para o interior do discurso científico buscando suas exceções e anomalias, se mostra como ferramenta analítica potente para examinar soluções imaginárias ubuescas nas práticas discursivas na região de cientificidade com potência de vida e de morte. Com isso, nos questionamos sobre os efeitos de verdade dessas práticas que se multiplicam nos campos da pesquisa científica e da educação em ciências. Práticas discursivas potencializadas durante a pandemia da COVID-19.

Em operação com a ciência das soluções imaginárias, investigamos como a imaginação aplicada às práticas discursivas que adotam o grotesco, o ubuesco, oferece condições para produção de verdades no campo científico. Ela que põe em órbita as exceções que constituem a ciência também movimenta e desequilibra a ciência pela imaginação. Nesse fluxo, a ‘Patafísica adentra nas frestas dos discursos que lançam mão de soluções imaginárias ubuescas, como as acima mencionadas. Contudo, ali não permanece. Interroga, problematiza e se descola desses discursos. Não somente porque não é seu papel negar a ciência, mas sim criar sobre ela. Também porque tanto Ubu, enquanto Professor e Doutor em ‘Patafísica, como Jarry, seu criador, são defensores da ciência. O criador, sempre atraído pelas inovações científicas do começo do seu século, se manteve informado sobre a ciência de seu tempo e transpõe esse fascínio nas falas da personagem mais conhecida de sua obra. Por conta disso, entendemos que a ‘Patafísica se descola da neociência ubuesca ambientada nas relações da ciência.

Dessa maneira, inventamos uma neociência moderna impulsionada pela imaginação ubuesca, que acolhe as características do poder ubuesco: poder de vida e de morte, poder de verdade e o poder de fazer rir. Riso que torna ambíguo o que toca e pode ser perigoso, como tantos risos, que não pretende ser outra coisa a não ser estúpido. Que faz rir de coisas das quais não se pode rir, nem zombar. Que coloca em risco a estabilidade da vida. Recordamos, quem estuda Foucault não ri de qualquer coisa. Importa, assim, saber de que lado se está quando se ri da ciência.

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  • O CECIMIG agradece ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico) e à FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais) pela verba para a editoração deste artigo.

Editado por

Editor responsável: Glauco dos Santos Ferreira e Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Dez 2022
  • Aceito
    04 Mar 2024
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