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A tortura reivindicada: como o bolsornarismo reencena o passado ditatorial em chave atualista

Claiming torture: how Bolsonarism re-enacts the dictatorial past in a updatist key

Resumo

A chegada de Jair Bolsonaro à presidência da república deu ensejo a muitas análises empenhadas em compreender a relação do político com o passado da ditadura militar - tema fortemente reivindicado em seus discursos e falas públicas. Neste artigo problematizamos as noções de temporalidade envolvidas nesse retorno ao passado, discutindo as noções de historicismo e de atualismo e situando as falas bolsonaristas sobre a ditadura e, mais precisamente, sobre a repressão política, dentro do leque mais amplo dos discursos públicos dos militares brasileiros sobre a violência do Estado. Nossa tese é a de que Bolsonaro, embora se apresente como herdeiro dos militares que participaram da repressão política, representa uma ruptura radical em relação às estratégias discursivas desse setor. Concluímos que ele rompe um enquadramento discursivo que nega o emprego sistemático da tortura e, ao fazer a defesa explícita da violência como instrumento de poder, retoma a ditadura não como um passado, mas como um projeto inacabado, a ser atualizado no presente.

Palavras-chave:
Ditadura militar; Historicismo; Tempo histórico

Abstract

The arrival of Jair Bolsonaro to the presidency of the republic gave rise to many analyzes committed to understanding the relationship between the politician and the past of the military dictatorship - a theme strongly claimed in his public speeches. In this article we think about the notions of temporality involved in this return to the past, discussing the notions of historicism and updatism situating the Bolsonarist speeches about the dictatorship and, more precisely, about political repression, within the broader range of public discourses of the Brazilian military. on state violence. Our thesis is that Bolsonaro, although he presents himself as the heir of the military who participated in the political repression, represents a radical rupture in relation to the discursive strategies of this sector. Our conclusion is that he breaks a discursive framework that denies the systematic use of torture and, by explicitly defending violence as an instrument of power, takes up the dictatorship not as a past, but as an unfinished project, to be updated in the present.

Keywords:
Military dictatorship; Historicism; Historical time

A chegada de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil causou perplexidade (REIS FILHO, 2020REIS FILHO, Daniel Aarão. A extrema-direita brasileira. Anuario, n. 32, Rosario, 2020.) e foi recorrentemente lida como uma mudança, uma “erosão da democracia” (TEÓFILO, 2019TEÓFILO, João. Jair Bolsonaro: uma ameaça à memória. História da ditadura, 04 ago. 2019. ), a “falência democrática de 2018” (TELES; QUINALHA, 2020TELES, Edson; QUINALHA, Renan (org.). Espectros da ditadura. São Paulo: Autonomia Literária , 2020.), a “crise do pacto de 1988” (BENTIVOGLIO; BRITO, 2020BENTIVOGLIO, Julio; BRITO, Thiago. Bolsonaro e a crise da Nova República: a política como conspiração. In: ARAUJO, Valdei; KLEM, Bruna Stutz; PEREIRA, Mateus (org.). Do fake ao fato. Vitória: Milfontes , 2020, p. 163-181. ) ou “um ponto de inflexão na curta trajetória democrática construída a partir da Nova República” (BENETTI et al., 2020a BENETTI, Pedro et al. As políticas de memória, verdade, justiça e reparação no primeiro ano do governo Bolsonaro: entre a negação e o desmonte. Mural Internacional, Rio de Janeiro, v.11, e48060, 2020. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/muralinternacional/article/view/48060/35880 . Aceso em: 30 mar. 2022.
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, p. 3). O acontecimento apresentou, entre outras novidades, o fato de que “[p]ela primeira vez desde que eleições diretas voltaram a ser realizadas, chegou à presidência um portador de discursos elogiosos ao período da ditadura” (BENETTI et al, 2020aBENETTI, Pedro et al. As políticas de memória, verdade, justiça e reparação no primeiro ano do governo Bolsonaro: entre a negação e o desmonte. Mural Internacional, Rio de Janeiro, v.11, e48060, 2020. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/muralinternacional/article/view/48060/35880 . Aceso em: 30 mar. 2022.
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, p. 3). Ainda que em diversos momentos da trajetória parlamentar o então deputado tivesse chamado a atenção para suas manifestações consideradas “politicamente incorretas”, foi durante o processo do golpe de 2016, nas eleições de 2018 e sua vitória eleitoral que os olhos se voltaram com mais atenção na tentativa de radiografar o perfil político do sujeito que saiu das bases conservadoras menos legitimadas e atingiu o cargo máximo do Executivo brasileiro.

As abordagens deram-se em um amplo leque de análises, em termos de formato, posição política e credibilidade: são biografias, como a realizada pelo reconhecido jornalista Luiz Maklouf Carvalho, O cadete e o capitão: a vida de Jair Bolsonaro no quartel (2019), por seu filho Flávio Bolsonaro, Bolsonaro: mito ou verdade (2017), ou a do argentino Ariel Goldstein Bolsonaro: la democracia en peligro (2019); podcasts como Retrato Narrado (2020), da revista Piauí pela repórter Carol Pires, e o recente Por que seu tio (ainda) ama o Bolsonaro (2022) da revista Carta Capital; e matérias jornalísticas de variadas matizes políticas.

Nessas tentativas de dissecar o fenômeno - ou “mito”, para a sua base apoiadora -, temáticas ligadas à ditadura militar apresentam-se como assunto incontornável para explicar a figura política de Bolsonaro. Logo no início da gestão do novo presidente, em janeiro de 2019, uma matéria da BBC apresentou o jovem Jair, residente em Eldorado dos Carajás. Nos discursos do adulto candidato à presidência, um evento marcante daquela época - envolvendo o guerrilheiro Lamarca e as Forças Armadas (FA) - começaria a ganhar contornos míticos, passando a ser considerado um momento destacado da construção de Bolsonaro em sua “pretensão de monumentalidade” (FARIA, 2020FARIA, Daniel. Anamorfose do día 08 de março de 1970 - ou: O mito em posição de alerta. In: KLEM, Bruna et al. (org.). Do fake ao fato. Vitória: Editora Milfontes, 2020, p. 101-111., p. 110). Pedretti (2020PEDRETTI, Lucas. Bolsonaro e a luta contra a memória das vítimas da ditadura. Etcetera, Córdoba, n. 6, 2020. Disponível em: https://revistas.unc.edu.ar/index.php/etcetera/article/view/29618/30425 . Acesso em: 30 mar. 2022.
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) defende que a reivindicação da ditadura militar foi operacionalizada de maneira cada vez mais constante na carreira parlamentar de Bolsonaro: sua versão heroica e monumental de como teria ajudado o Exército a capturar Lamarca em 1970 aparece pela primeira vez em 2007 - 11 anos após o primeiro discurso a citar o personagem revolucionário (PIRES, 2020).

Bolsonaro passa a articular suas críticas já tradicionais em plenário - como as dirigidas às reparações possibilitadas pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (1995CATEB, Caio et al. A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão de Anistia no primeiro ano do governo Bolsonaro. In: TELES, Edson; QUINALHA, Renan (org.). Espectros da ditadura. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. p. 271-310.) e pela Comissão de Anistia (2002) - com o argumento de que a corrupção, cristalizada naquele momento no recente escândalo do mensalão deflagrado em 2005, originava-se na esquerda: nesse cenário, a ditadura passou a ser apresentada como alternativa para a eliminação da prática corrupta (BENTIVOGLIO; BRITO, 2020BENTIVOGLIO, Julio; BRITO, Thiago. Bolsonaro e a crise da Nova República: a política como conspiração. In: ARAUJO, Valdei; KLEM, Bruna Stutz; PEREIRA, Mateus (org.). Do fake ao fato. Vitória: Milfontes , 2020, p. 163-181. , p. 165). Essa construção argumentativa corroborou uma expansão da estratégia política de Bolsonaro, que passa a acenar para além das fronteiras de seu grupo eleitoral mais tradicional, as FA (PEDRETTI, 2020PEDRETTI, Lucas. Bolsonaro e a luta contra a memória das vítimas da ditadura. Etcetera, Córdoba, n. 6, 2020. Disponível em: https://revistas.unc.edu.ar/index.php/etcetera/article/view/29618/30425 . Acesso em: 30 mar. 2022.
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, p. 11; PIRES, 2020), ampliando o seu eleitorado na sociedade civil.

O novo ordenamento político, representado pela emergência de Bolsonaro e de uma extrema-direita fortalecida, parecem ter convocado o campo acadêmico a refletir sobre as implicações desse fenômeno para nossa história. Esse esforço inscreve-se em uma curva ascendente de interesse pelo fenômeno das direitas e do autoritarismo, não mais como um acontecimento do passado, mas, sobretudo, como um evento do presente ou com reverberações, continuidades e impactos no momento atual. A escalada é perceptível em publicações inteiramente destinadas às reflexões que mobilizam o tema da ditadura militar e o da ascensão de Bolsonaro em uma perspectiva do presente (MENESES; MELO, 2019MENESES, Sonia; MELO, Egberto. História, memória e leituras do passado. In: MENESES, Sonia (org.). História, memória e direitos. São Paulo: Letra e Voz, 2019. p. 37-51.) e que apontam para uma percepção sobre tempos não-encapsulados, para usar a expressão proposta por Klem (2020KLEM, Bruna et al. (org.). Do fake ao fato. Vitória: Milfontes , 2020.): trabalham com ideias sobre passados espectrais (TELES; QUINALHA, 2020TELES, Edson; QUINALHA, Renan (org.). Espectros da ditadura. São Paulo: Autonomia Literária , 2020.), em aberto e em disputa (ROVAI, 2019ROVAI, Marta. Introdução. In: MENESES, Sonia (org.). História, memória e direitos. São Paulo: Letra e Voz , 2019. p. 7-10., p. 7) e presentes multidimensionais atravessados por futuros e passados (KLEM et al., 2020KLEM, Bruna et al. (org.). Do fake ao fato. Vitória: Milfontes , 2020., p. 17). Frente a isso, cabe questionar: seria possível compreender a ditadura brasileira na atualidade sem observar Bolsonaro?

A perplexidade com a ruptura política provocada por Bolsonaro constitui a força motriz dos debates que tentam desvendar como uma figura que rompe com consensos sociais aparentemente consolidados chega à presidência. Nessa equação, o elemento “ditadura” passa a constar como signo principal: até então, imperava o entendimento social promovido pela Lei de Anistia de 1979 e consagrado na Constituição de 1988 sobre a não eliminação de opositores políticos (PEDRETTI, 2021PEDRETTI, Lucas. Afinal, o que há de tão inaceitável no bolsonarismo? História da Ditadura, 06 set. 2021.). Em outras palavras, apesar das manifestações dele como parlamentar já referendarem a defesa de ditadores, operadores do sistema repressivo e uma memória gloriosa do golpe de 1964, é principalmente com o êxito desse discurso junto a parcela da sociedade civil que a figura do político se torna objeto de interesse.

É praticamente acordo comum, na literatura consultada, que o fato de colocar em xeque o que vinha se consolidando como memória do passado autoritário não significa, no caso de Bolsonaro, negar a existência da ditadura, mas, ao contrário, legitimá-la, “reabilitar historicamente o golpe e a ditadura” (TEÓFILO, 2021TEÓFILO, João. Forças Armadas, bolsonarismo e a erosão da democracia no Brasil. História da Ditadura, 18 ago. 2021. ). Como sugere Faria (2020FARIA, Daniel. Anamorfose do día 08 de março de 1970 - ou: O mito em posição de alerta. In: KLEM, Bruna et al. (org.). Do fake ao fato. Vitória: Editora Milfontes, 2020, p. 101-111., p. 110), a própria escolha de Ustra como herói e autor de cabeceira é indiciária de sua predileção pela ideia de “aniquilação do inimigo”, afinal, elegeu-se como inspiração a figura que se tornou o símbolo do “centro da engrenagem” repressiva. Não é sem motivos que, portador dessa “cosmovisão” (DI CARLO; KRAMRADT, 2018DI CARLO, Josnei; KRAMRADT, João. Bolsonaro e a cultura do politicamente incorreto na política brasileira. Teoria e Cultura, Juiz de Fora, v. 13, n. 2 dez 2018. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/TeoriaeCultura/article/view/12431 . Acesso em: 30 mar. 2022.
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) alicerçada nos elogios à ditadura, as políticas do novo governo impactaram fortemente as comissões reparatórias - a CEMDP, a de Anistia -, bem como a imagem da Comissão Nacional da Verdade (CNV) (BENETTI et al.., 2020BENETTI, Pedro et al. As políticas de memória, verdade, justiça e reparação no primeiro ano do governo Bolsonaro: entre a negação e o desmonte. Mural Internacional, Rio de Janeiro, v.11, e48060, 2020. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/muralinternacional/article/view/48060/35880 . Aceso em: 30 mar. 2022.
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; CATEB, 2020CATEB, Caio et al. A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão de Anistia no primeiro ano do governo Bolsonaro. In: TELES, Edson; QUINALHA, Renan (org.). Espectros da ditadura. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. p. 271-310.; PEDRETTI, 2020PEDRETTI, Lucas. Bolsonaro e a luta contra a memória das vítimas da ditadura. Etcetera, Córdoba, n. 6, 2020. Disponível em: https://revistas.unc.edu.ar/index.php/etcetera/article/view/29618/30425 . Acesso em: 30 mar. 2022.
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; FERNANDES, 2022FERNANDES, Felipe B. S. D. Memórias da ditadura: a atuação do Estado brasileiro frente ao seu passado ditatorial militar. 2022. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Pelotas, RS: Universidade Federal de Pelotas, 2022.). Os estudos sobre este aspecto específico apontam para a “inversão de sinal” operada por Bolsonaro a partir do uso da estrutura estatal para reposicionar os valores que ali imperavam em termos de direitos humanos (CATEB et al, 2020CATEB, Caio et al. A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão de Anistia no primeiro ano do governo Bolsonaro. In: TELES, Edson; QUINALHA, Renan (org.). Espectros da ditadura. São Paulo: Autonomia Literária, 2020. p. 271-310., p. 297). Essas alterações não são compreendidas como uma mudança pontual no campo discursivo, mas como um atendimento direto à expectativa de instituir uma nova história, pretensamente a “verdadeira” (MENESES, 2020MENESES, Sonia; MELO, Egberto. História, memória e leituras do passado. In: MENESES, Sonia (org.). História, memória e direitos. São Paulo: Letra e Voz, 2019. p. 37-51.), que coloca em questão o relato apresentado por sobreviventes e familiares de pessoas atingidas por violência de Estado durante a ditadura, por muito tempo considerado como “memórias subterrâneas” (BAUER, 2020BAUER, Caroline. Usos do passado da ditadura militar brasileira em manifestações públicas de Jair Bolsonaro. In: ARAUJO, Valdei; KLEM, Bruna Stutz; PEREIRA, Mateus (org.). Do fake ao fato. Vitória: Milfontes , 2020. p. 183-203., p. 188; TEÓFILO, 2021).

Contudo, se a perplexidade frente a um presidente elogioso à ditadura e à sua intenção de refundar o Brasil e sua história é o ponto de partida dos textos aqui cotejados, menos comuns são as análises que buscam compreender a aderência social ampla a esse discurso. Os que enveredaram a enfrentar esta questão reivindicam, sobretudo, a longa tradição brasileira quanto à aceitação à violência para explicar o feito. Nesse sentido, Bauer apresenta a estabilidade da memória da ditadura no circuito das FA que, ao longo do tempo, sempre mantiveram sua interpretação sobre o golpe como uma “revolução redentora” (BAUER, 2020BAUER, Caroline. Usos do passado da ditadura militar brasileira em manifestações públicas de Jair Bolsonaro. In: ARAUJO, Valdei; KLEM, Bruna Stutz; PEREIRA, Mateus (org.). Do fake ao fato. Vitória: Milfontes , 2020. p. 183-203., p. 186) - visão sustentada também por Cunha (2020CUNHA, Rosa M. C. Comissão Nacional da Verdade: impulso à democratização ou fator de retrocesso? In: TELES, Edson; QUINALHA, Renan (org.). Espectros da ditadura. São Paulo: Autonomia Literária , 2020. p. 179-206.) ao explicar a operacionalização da experiência da CNV no novo cenário político. Pedretti (2021PEDRETTI, Lucas. Afinal, o que há de tão inaceitável no bolsonarismo? História da Ditadura, 06 set. 2021.), por sua vez, pontua que o rompimento da aceitação da violência política trazido pela Constituição de 1988 não ocasionou o fim da prática da repressão estatal que, com os novos contornos impostos pela preocupação com a violência urbana, mudou o alvo de seu exercício violento. Em acordo com esse panorama, a leitura política da ascensão de Bolsonaro deveria considerar a “[...] permanência da violência como elemento central na reprodução da ordem no Brasil [...] como elemento transversal da história do Estado brasileiro” (BENETTI et al.., 2020BENETTI, Pedro et al. As políticas de memória, verdade, justiça e reparação no primeiro ano do governo Bolsonaro: entre a negação e o desmonte. Mural Internacional, Rio de Janeiro, v.11, e48060, 2020. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/muralinternacional/article/view/48060/35880 . Aceso em: 30 mar. 2022.
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, p. 6).

As reflexões convocadas nos parágrafos anteriores demonstram certa convergência sobre três aspectos: 1. trata-se de textos motivados pela surpresa em observar consensos aparentemente estáveis caírem por terra, dando lugar a novas prioridades relativas à expectativa de refundar a nação e recontar sua história - assim coincidem sobre o caráter de ruptura ou alteração profunda a partir da ascensão de Bolsonaro -; 2. no que tange especificamente à mobilização da ditadura, apresentam uma tendência em conceber o autoritarismo no presente, não apenas pela atualização autoritária que o novo governo promove, mas também por diluir fronteiras rígidas que encerravam a ditadura no passado; e 3. nem todos textos encaram a questão da aderência social ao projeto bolsonarista, mas os que o fazem tendem a apresentar conclusões que revisitam uma tradição violenta e autoritária brasileira.

A contribuição deste artigo situa-se em dois pontos. Primeiramente, refletir como o tempo cronológico de distanciamento dos anos da ditadura não corresponde ao tempo da memória pública sobre o tema; o processo pode chegar quase a inverter-se: quanto mais distante no tempo, mais próxima a ditadura como presença constante no debate público. Em segundo, apresentar um breve histórico sobre a fala pública de militares do Exército envolvidos na repressão política ao longo das últimas décadas. Sustentamos que o fenômeno Bolsonaro significa uma retomada discursiva ao passado ditatorial, porém em chave radicalmente nova, à medida que representa a adesão de uma parcela da sociedade brasileira à defesa explícita do uso da tortura e da eliminação de opositores e sujeitos considerados socialmente indesejáveis como forma legítima de fazer política.

Irrupção do passado

Em 2004, o Correio Braziliense publicou uma fotografia que, supostamente, seria do jornalista Vladimir Herzog, quando de sua prisão. Na imagem, um homem magro, abatido, dentro de uma cela. Em meio à polêmica sobre a identidade do retratado, que acabou redespertando um dos momentos mais dramáticos da ditadura, a Comunicação Social do Exército divulgou uma nota oficial:

Nesse novo ambiente de amadurecimento político, a estrutura [repressiva] criada tornou-se obsoleta e desnecessária na atual ordem vigente. Dessa forma, e dentro da política de atualização doutrinária da Força Terrestre, no Exército brasileiro não existe nenhuma estrutura que tenha herdado as funções daqueles órgãos. Quanto às mortes que teriam ocorrido durante as operações, o Ministério da Defesa tem, insistentemente, enfatizado que não há documentos históricos que as comprovem, tendo em vista que os registros operacionais e da atividade de inteligência da época foram destruídos em virtude de determinação legal. […]. Coerente com seu posicionamento, e cioso de seus deveres constitucionais, o Exército brasileiro, bem como as forças co-irmãs, vêm demonstrando total identidade com o espírito da Lei da Anistia, cujo objetivo foi proporcionar ao nosso país um ambiente pacífico e ordeiro, propício para a consolidação da democracia e ao nosso desenvolvimento, livre de ressentimentos e capaz de inibir a reabertura de feridas que precisam ser, definitivamente, cicatrizadas. Por esse motivo considera os fatos como parte da história do Brasil (Nota do Centro de Comunicação Social do Exército, Folha de S.Paulo, 2004FOLHA DE S. PAULO. Leia a íntegra da nota divulgada pelo Exército, 19 out. 2004. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1910200417.htm . Acesso em: 15 ago. 2022.
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).

Essa nota traz, implicitamente, toda uma concepção de historicidade. Em primeiro lugar, as estruturas repressivas montadas durante a ditadura estariam marcadas, na democracia, por sua obsolescência. Sendo assim, não é que aquelas estruturas fossem injustificáveis em seu tempo, pelo contrário, seriam coerentes e racionais, dentro de um contexto histórico determinado. Esse, remeteria a uma espécie de passado que já passou, uma época fechada em si mesma e definitivamente concluída. Essa concepção sobre uma certa historicidade enlaçando um passado ditatorial e um presente democrático era arrematada com a ideia de que aquele contexto histórico seria, então, assunto para historiadores. A historiografia sendo, por sua vez, concebida como um empreendimento demarcado pela nítida separação entre historiador e objeto de pesquisa, presente e passado. Evidentemente, essa leitura das “estruturas operacionais” que teriam perdido sua atualidade, não implicava qualquer discussão sobre a legitimidade ou mesmo a justiça das operações empreendidas no passado. A ideia de coerência histórica de um determinado período, em síntese, de uma racionalidade intrínseca ao processo histórico, derivava para uma espécie de justificativa do ocorrido. Ou seja, embora não a nomeando como tal, a nota do Exército considerava a ditadura militar justificada por ter sido coerente com seu tempo, cumprindo uma determinada missão. O passado era tratado, metaforicamente, como ferida a ser cicatrizada para que se tornasse um objeto histórico. A ferida aberta remetia à persistência das paixões e dores vividas, sendo estas um impedimento ao trabalho impassível da escrita da história.

Chama a atenção que a ditadura militar, em inúmeras notas e comentários de militares sobre o tema, tenha se tornado “histórica” passados poucos anos de seu encerramento. Por exemplo, já em 1989, saía, no Estado de S. Paulo, a notícia de que “Militares comemoram 25 anos da RevoluçãoO ESTADO DE S. PAULO. Militares comemoram 25 anos da Revolução, 31 mar. 1989.”. A “revolução” era tratada pelos ministros militares como um “fato histórico”. Fato, este, comentado na Ordem do Dia de 31 de março daquele ano, segundo a qual, 25 anos antes, a democracia estava profundamente ferida, as instituições desmoronavam e o país era tomado pela agitação e pelo grevismo. A intervenção das FA, respondendo a um veemente apelo social, teria vindo para interromper esse processo de desagregação nacional. “Hoje”, no entanto, vivia-se numa normalidade democrática institucional, com uma nova Constituição em vigor. O quadro histórico mudara, mas permanecia o dever patriótico de velar pela ordem. Arquitetava-se, assim, um jogo de rupturas e permanências. De um lado, um ontem de desagregação e um hoje de consolidação institucional, de outro, a permanência das FA como esteio da lei e da ordem. Nesse ambiente supostamente pacificado, as comemorações dos 25 anos da “revolução” se dariam, inclusive, no quartel da Polícia do Exército do Rio de Janeiro, antiga sede do Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). Diante da celebração, o movimento Tortura Nunca Mais protestava, porque aquele lugar havia sido um “antro de torturas”: a voz dos atingidos pela violência repressiva trazia um outro sentido para a pretensa distância histórica entre passado e presente. Mais do que um dado objetivo da realidade, poderia se tratar, nesse caso, de um gesto de exorcismo do passado e seus fantasmas que assombravam aquele presente.

Na literatura mais crítica sobre as concepções de historicidade subjacentes às teorias da transição democrática e mesmo, mais amplamente, sobre o modo como a historiografia lida com as atrocidades herdadas do passado, sobretudo o século XX, encontramos a tese de que o estatuto das vítimas como personagens da história e objetos de conhecimento, é central nas discussões que articulam ideias de objetividade histórica e distanciamento temporal (BEVERNAGE, 2012BEVERNAGE, Beber. History, Memory, and State-Sponsored Violence Time and Justice. New York: Routledge, 2012.). Meister (2012MEISTER, Robert. After evil. New York: Columbia University Press, 2012. ), por exemplo, em estudo sobre a temporalidade dos discursos sobre direitos humanos ao fim do XX e início do XXI - o passado que eles dizem encerrar e o futuro que prometem abrir -, observa que neles são centrais os temas da reconciliação com as feridas do passado e da compaixão pelos corpos em sofrimento. Essa rede discursiva, ainda segundo o autor, é composta por diversos agentes: as vítimas, os perpetradores, os beneficiários das violências passadas e os espectadores. Esses últimos tendem a permanecer ocultos, porque os benefícios de que eles dispõem no presente são fruto das violências passadas - ou seja, são ilegítimos. As vítimas são instauradas como sofredoras passivas, que não devem esquecer as atrocidades sofridas e, ao mesmo tempo, perdoar. Teriam, então, uma espécie de vitória moral - desde que resignadas a esse tipo de superioridade simbólica, que deixa intacto o mundo presente construído pelas atrocidades passadas. A esperança implícita seria a de que vítimas de um mal passado, pacificadas e reconciliadas, não vão lutar contra os beneficiários atuais daquele mesmo mal. Nesse caso, a vitória moral implica que os derrotados não desejem mais vencer - ao contrário, as vítimas que insistem em tratar os beneficiários das violências passadas como cúmplices dos perpetradores, são vistas como “extremistas”, ou, no vocabulário brasileiro, “revanchistas”. Havendo, então, aí, uma ideia de história: o passado que passou deve ser lembrado, o presente traz uma ruptura com esse passado - e, nesse mesmo passo, as feridas poderiam se tornar objetos e fatos históricos. Nisso, o consenso moral é o de que o passado é o mal, sob a condição do consenso político de que o mal é passado.

Um caminho sem fim

Curiosamente, nos últimos anos, a reviravolta nos pressupostos temporais das relações entre o presente e o passado, ou seja, na noção de que a ditadura militar pertence a um passado que passou, não foi provocada pelos vencidos, mas sim pelos que se dizem herdeiros diretos das estruturas repressivas do regime autoritário. Foi desse campo que emergiu com força a disposição de reabrir velhas feridas. São inúmeros os exemplos, nos ateremos a três. O primeiro vem da “nova” Comissão de Anistia. Num título síntese, a página Uol noticiou que “Sob Bolsonaro, Comissão de Anistia muda critérios e vítima vira terroristaMARCHAO, Talita. Sob Bolsonaro, Comissão de Anistia muda critérios e vítima vira terrorista. UOL, 10 ago. 2018. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/08/10/anistiando-terrorista-e-decisao-com-base-em-infancia-militar-as-decisoes.htm . Acesso em: 15 ago. 2022.
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”: solicitações de Anistia encaminhadas à Comissão foram negadas, inclusive sob o argumento de que a solicitante tinha sido uma “terrorista”. Nesse passo, o vocabulário da ditadura retornava, praticamente sem mediações. O passado trespassava o presente e o Estado, supostamente democrático, recorria a uma linguagem política que parecia pertencer a outros tempos.

O segundo exemplo é uma fala de Eduardo Bolsonaro. Em 2019, o deputado afirmou que se as esquerdas “radicalizassem” o governo poderia decretar um “novo AI-5” (UOL on line, 2019UOL. Bolsonaro fala em novo AI-5 “se esquerda radicalizar”, 31 out. 2019. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/10/31/eduardo-bolsonaro-fala-em-novo-ai-5-se-esquerda-radicalizar.htm . Acesso em: 15 ago. 2022.
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). A reivindicação por um novo AI-5 não ficou restrita a essa fala isolada, tornou-se uma das palavras de ordem nas manifestações favoráveis ao governo de Bolsonaro. É difícil, talvez mesmo impossível, entender-se o que seria esse novo ato institucional - talvez porque a historiografia tenha nos acostumado a pensar o AI-5 segundo uma lógica e uma estratégia situadas num tempo determinado. E simplesmente não conseguimos encontrar identidade política entre 1968 e 2019.

Em artigo elogioso ao AI-5, publicado em 1988, Delfim Netto dizia que “o clima de 68 não se repeteO ESTADO DE S. PAULO. Clima de 68 não se repete, 12 out. 1988, p. 6.” e que “nas mesmas condições de temperatura e pressão” de 1968, ele assinaria o Ato novamente. Mas apostava que o mundo de 1988 não era mais o mesmo de duas décadas antes. Afirmava, ainda, que não era prudente evocar os fantasmas do passado. Segundo o ex-ministro, em 1968 o governo foi confrontado por uma esquerda infantil que o colocou no dilema de impor a ordem ou cair. A decisão pelo AI-5 tinha sido, portanto, racional e coerente com aquele contexto. Evidentemente havia também implícita aí a tese de que a esquerda dos anos 1980 não era mais aquela “esquerda infantil”. Além disso, dizia que nem tudo o que aconteceu após o Ato se devia a ele - e que, portanto, não subscrevia tudo o que se seguiu ao AI-5.

O terceiro exemplo é o infame discurso de Bolsonaro na votação do golpe parlamentar contra Dilma Rousseff. Ali, o então deputado evocou a memória de Ustra, mas foi além da simples homenagem, ao atribuir ao antigo chefe do DOI-CODI o epíteto de “o pavor de Dilma”. Naquele contexto, seu espírito era então conjurado para repetir o mesmo terror que ele impetrara nos anos 1970. Como se a votação do impeachment fosse a continuação das torturas por outros meios. Aqui, como antes, o passado e o presente pareciam colidir numa única temporalidade: não havia mais o discurso da ruptura, mesmo que usado para justificar a ditadura em seu suposto espírito de época, e sim a evocação de um passado imediatamente presente no presente.

Do historicismo ao atualismo, uma hipótese

Nesse curto-circuito, de um passado que advém de modo aparentemente imediato no presente, Araujo e Pereira (2018ARAUJO, Valdei; PEREIRA, Mateus. Atualismo 1.0. Mariana: Seminário Brasileiro de Teoria e História da Historiografia, 2018.) encontram uma chave para pensarmos uma historicidade específica, a atualista. Vimos na nota do Exército, em torno do caso da imagem de Herzog, a projeção da ideia de uma estrutura operacional obsoleta, porém racional e coerente com seu tempo. Isso implicava a ideia de uma missão cumprida e exitosa, mas encerrada, na medida em que o país entrara numa nova fase da sua evolução. A essa concepção de historicidade, com a ideia de época como um recorte temporal coerente consigo mesmo, uma totalidade dotada de sentido, distinta do presente, mesmo que tendo com ele continuidades, conceituamos aqui de historicista. Evidentemente, a ameaça de um novo AI-5 ou a convocação de Ustra como terror redivivo de Dilma Rousseff não estão contidos nessa sensibilidade histórica.

Pode-se dizer, ainda, que o historicismo opera com a noção de significado. Nesse âmbito, a historiografia seria uma decifração posterior do significado de uma experiência vivida (mesmo que esse significado seja elaborado na perspectiva do vencedor, que considera seus feitos não apenas racionais, mas também moralmente corretos). Já o atualismo opera com a noção de presença. O passado não é explicado ou compreendido pelo presente, é encapsulado no presente, emergindo de modo aparentemente imediato, mesmo que sob a figura de um espectro ou fantasma.

O que se toma aqui como sensibilidade historicista deriva do pressuposto de que todos os fenômenos da cultura são historicamente determinados (SCHOLTZ, 2011SCHOLTZ, Gunter. O problema do historicismo e as ciências do espírito no século XX. História da Historiografia, Ouro Preto, v. 4, n. 6, p. 42-63, 2011. Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/239/167 . Acesso em: 30 mar. 2022.
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, p. 44). A história, por sua vez, produz mutações, diferenças, no decorrer do tempo. Considerar historicamente uma experiência seria, nesse sentido, entender que “os valores nascem em uma situação histórica concreta” (REIS, 2002REIS, José Carlos. O historicismo e a redescoberta da história. Locus, v. 8, n. 1, 2002. , p. 5). Daí a ideia do passado que passou, ainda que como parte de um fluxo, de um tempo histórico contínuo, progressivo, uma totalidade em que o processo histórico ganha o sentido de constituição da humanidade ao longo do tempo (MARTINS, 2008MARTINS, Estevão Rezende. Historicismo o útil e o desagradável. In: ARAÚJO, Valdei et al. A dinâmica do historicismo. Belo Horizonte: Argumentum, 2008, p. 15-48. , p. 17) que, diga-se, faz do historicismo uma expressão colonial de uma ideia de Ocidente, como lugar da história propriamente dita (SETH, 2013SETH, Sanjay. Razão ou raciocínio? Clio ou Shiva?História da historiografia, Ouro Preto, n. 11, p. 173-189, 2013. Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/554/352 . Acesso em: 30 mar. 2022.
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). Já na perspectiva combativa de Walter Benjamin, é esse conjunto de pressupostos, remetendo à imagem do tempo homogêneo e vazio do historicismo, que faz do mesmo uma espécie de apologia do vencedor (LÖWY, 2005LÖWY, Michael. Walter Benjamim. Aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005.) - o que tem importantes implicações em se tratando da história da ditadura militar. No caso da sensibilidade atualista, como veremos, longe de corresponder a uma época distinta dentro de um continuum temporal, o passado está permanentemente disponível para novas retomadas, numa exigência permanente de atualização que também tem implicações sobre as relações entre o presente e o futuro (ARAUJO; PEREIRA, 2018ARAUJO, Valdei; PEREIRA, Mateus. Atualismo 1.0. Mariana: Seminário Brasileiro de Teoria e História da Historiografia, 2018.).

Passamos assim da predominância de um discurso da ditadura militar como fato histórico para um discurso que a atualiza. Isso não significa que saímos de uma relação pacificada com o passado para uma relação conflituosa. Lembremos que o gesto historicista pode implicar uma tentativa de exorcização do passado. Um desejo de fazer o passado passar, uma defesa. Resulta a situação paradoxal de que a ditadura militar tenha sido apresentada como um passado passado poucos anos após o seu encerramento.

Entre atualismo e historicismo, temos, portanto, duas estratégias políticas para lidar com as heranças da ditadura. O atualismo é marcado por um movimento incessante de repetição, de emergência de novidades aparentes. No historicismo, o passado é pensado com estatuto ontológico próprio, daí a possibilidade de tratar uma experiência passada como algo coerente com seu próprio tempo e como objeto de investigação. No atualismo, as categorias da historicidade mudam das relações entre passado e presente para as tensões entre o obsoleto e o atualizado, que, por sua vez, tem efetividade num presente autocentrado, condenado a repetir incessantemente o processo de atualização; o obsoleto é o descartável, o inválido e mesmo o ilegítimo. Quando se ameaça um novo AI-5, ou quando Bolsonaro fala em Ustra na votação do golpe, o que está sendo proposto é uma atualização de momentos decisivos da ditadura militar, que opera uma colisão entre passado, presente e futuro, esvaziados de conteúdo histórico. Daí que paradoxalmente os eventos e agentes evocados soem deslocados, fantasmagóricos, espectrais. Uma marca evidente da evocação de um novo AI-5 é a ignorância histórica sobre o que foi o AI-5 histórico, um novo AI-5 seria necessariamente diferente do de 1968.

É ainda essa mudança de sensibilidade histórica que explica o paradoxo de que, em 1988 a ditadura militar era passado, assunto para historiadores, ao passo que em 2022 ela parece mais próxima - porque passível de atualização. Donde a sensação de que a distância cronológica aumentou, mas que ao mesmo tempo a ditadura militar está mais próxima do presente do que em anos anteriores. Há uma mudança no estatuto epistemológico: os atores que pedem um novo-AI-5 e que evocam a presença de Ustra parecem desconhecer os eventos que eles mesmos trazem à tona. Afinal, o mundo mudou? A missão daquela estrutura operacional perpetradora de atrocidades foi cumprida ou não? Mas esse aparente desconhecimento do passado no discurso de seus pretensos atualizadores não deve ser entendido como uma relação aleatória com a história, porque há uma lógica subjacente: o que é atualizado é justamente o terror. Bolsonaro não homenageia um dos ditadores, mas sim o torturador Ustra. Eduardo Bolsonaro não ameaça com um novo 31 de março/1º de abril de 1964, evoca um novo AI-5. O que se atualiza aqui não é o passado enquanto tal, e sim seus momentos de maior violência.

O discurso público dos militares sobre a tortura

Um breve levantamento do discurso público dos militares sobre a violência de Estado praticada durante a ditadura contribui a compreender como essa evocação - ou atualização - do passado, proposta pelo bolsonarismo, representa uma proposta nova e radical. A Lei de Anistia, em que pese as disputas de que foi alvo e a multiplicidade de sentidos que mobilizou em diferentes setores políticos foi imposta pelos militares governistas dentro do registro do “esquecimento comandado”, ou da “memória impedida” (RICOEUR, 2007RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: EdUnicamp, 2007., p. 459). Para aqueles envolvidos nas estruturas repressivas, contrários à distensão, a medida representava um inaceitável esforço “conciliatório” com os inimigos do país, uma vez que, embora beneficiados pela lei, seguiam contrários à abertura política.1 1 Essa dimensão seria retomada pelo bolsonarismo em sua reivindicação da lógica do confronto. A autoanistia aos repressores, traficada na nebulosa figura dos “crimes conexos”, evita nomear os atores favorecidos por haverem se envolvido em graves violações dos direitos humanos. Se tomamos o texto da lei como uma espécie de discurso público sobre a violência repressiva - “É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes [...]” -, entendemos que naquele momento, ele mal chega a se enunciar. Ou seja, anistiava-se uma série de crimes e seus autores, agentes do Estado, por meio de um subterfúgio linguístico que por si só constituía uma pá de cal de esquecimento.

Os conflitos que opuseram a repressão política e a oposição de esquerda foram transferidos para outra arena: chamada por Martins Filho (2002MARTINS FILHO, João Roberto. A guerra de memória. Varia História, Belo Horizonte, UFMG, n. 28, dez. 2002. Disponíevel em: Disponíevel em: http://historiapolitica.com/datos/biblioteca/brasil_martins.pdf . Acesso em 30 mar. 2022.
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) de “guerra de memória”, entre o esforço de ex-presos políticos de narrar o ocorrido e a reivindicação, por parte dos repressores, de virar a página. Ironia da história, os vencedores da guerra antirrevolucionária não tinham, na nova ordem que ajudaram a construir, o espaço de heróis de que haviam usufruído nos anos prévios, quando se dedicaram a aniquilar os grupos clandestinos de esquerda. Assistiram impotentes seus inimigos voltarem do exílio, rodeados de apoiadores, e viram o que consideravam suas gloriosas trajetórias transformarem-se, nas narrativas de perseguidos políticos, em um aglomerado de práticas abjetas. No mercado político dos civis, suas condecorações - como a Medalha do Pacificador com Palma - transformavam-se em insígnias de desprestígio. Diante da inevitável transição democrática, na impossibilidade de reivindicar publicamente seus louros, exigiam o silêncio sobre um passado que violava a sensibilidade dos civis que outrora os haviam apoiado. Nos anos que se seguiriam, em 1985, militares (e civis) envolvidos na repressão política recearam que a precária Lei da Anistia ruísse e que a nova correlação de forças na política nacional revertesse a vitória da ditadura sobre os setores mais radicais da esquerda. O Projeto Brasil: Nunca Mais oferecia farta documentação, produzida pelo próprio aparato repressivo, para apoiar a tese da sistematicidade da violência do Estado contra opositores. Neste momento, ao mesmo tempo em que a ditadura vivia tamanho ostracismo que as celebrações oficiais das FA do aniversário do golpe recolheram-se aos quartéis (RODRIGUES; VASCONCELOS, 2014RODRIGUES, Fernando; VASCONCELOS, Cláudio Beserra. Os oficiais brasileiros da reserva e a defesa da memória institucional do “31 de março de 1964”. História Unisinos, São Leopoldo, n. 18, v. 3, set.-dez. 2014. p. 514-158. Disponível em: https://revistas.unisinos.br/index.php/historia/article/view/htu.2014.183.05/4375 . Acesso em: 30 mar. 2022.
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, p. 518), o temor de revisão do passado recente traduzia-se em clima da constante ameaça de retorno dos militares ao poder (AGUIAR, 1999AGUIAR, Leila. “Não se trata de uma ameaça, mas...”. Um estudo das declarações dos ministros militares durante o governo Sarney. Texto CPDOC/FGV, n. 34, 1999.).

Para os setores que se opuseram à ditadura, o silêncio não era uma opção. A denúncia da repressão política foi a pedra angular da construção de uma memória contrária ao autoritarismo e teve repercussão importante. Os integrantes da comunidade repressiva viram esse fenômeno como a abertura de uma nova trincheira da guerra antirrevolucionária, na qual deveriam engajar-se. É esse o sentido de títulos como Brasil: sempre!, (1986) do tenente-coronel Marco Pollo GiordaniGIORDANI, Marco Pollo. Brasil: Sempre. Santa Maria: Tchê, 1986., ou Rompendo o silêncio (1987), de Ustra. Nessas obras, a negação da tortura vai de passo com uma defesa das estruturas operacionais, com base na noção de resposta das FA a uma guerra suja. A violência do Estado é justificada como resposta a uma ameaça à ordem social imposta pelas organizações clandestinas de esquerda, porém sempre dentro de uma ética do combate: “guerra é guerra”. A mesma lógica que presidiu, durante a ditadura, a simulação de tiroteios ou fugas, para justificar o assassinato sob tortura ou execuções de detidos políticos. As falsas versões sobre as mortes, replicadas em jornais, podem ser consideradas precursoras da narrativa pública dos agentes repressivos sobre a violência praticada. Nessa operação discursiva, os militares teriam agido de forma reativa e contra um oponente cujo poder de fogo equivaleria ao de um exército inimigo, porém cujos métodos, insidiosos e traiçoeiros, excluiriam a possibilidade de tratá-los como equivalentes. A estratégia narrativa abre espaço para a justificação do uso de métodos “não convencionais” - “os terroristas não eram cidadãos comuns” (USTRA, 1987USTRA, Carlos Alberto Brilhante. Rompendo o silêncio. Brasília: Editerra, 1987., p. 157) -, porém sem reivindicá-los abertamente.

Como instituição, as FA tenderam a manifestar-se por meio de um discurso de defesa de sua intervenção política - tacitamente incluindo a repressão -, porém sem nunca admitir de forma explícita a utilização da tortura como instrumento sistemático. No início dos anos 1990, a publicação pelo Centro de Pesquisa e Documentação (CPDOC) da Faculdade Getúlio Vargas (FGV) da série de depoimentos de altos oficiais do aparato repressivo abriu novo capítulo da declaração pública de militares sobre a ditadura. O cenário parecia distinto daquele de meados dos anos 1980: com a progressiva passagem para a reserva dos principais atores do governo militar, uma nova geração, em tese pouco implicada com a repressão política, havia assumido os principais postos de comando das FA. A volta dos militares ao governo já não pairava como alternativa e esboçava-se um movimento de distanciamento dos “excessos” da ditadura.

O repertório do discurso militar amplia-se, abrindo espaço para algumas estratégias além do simples negacionismo. O mais frequente foi o subterfúgio de atribuir a violência a indivíduos que teriam escapado ao comando e cometido “abusos”, efeitos colaterais de uma guerra imposta pelo inimigo. Outra tática que aparece com constância é a de voltar as denúncias de tortura contra os próprios denunciantes, desacreditando e infamando os adversários. Afirma-se que a grande maioria dos interrogados ficavam em tal estado de pânico que entregavam os seus companheiros sem necessidade do uso da força. Mais tarde, diante das auditorias militares, alegariam ter sido torturados, instruídos por seus advogados, para invalidar seus depoimentos: “Então, creio que essa campanha contra a tortura foi uma arma política orquestrada contra aqueles que eram encarregados da repressão” (CASTRO; D’ARAUJO et al., 1994D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES Gláucio Ari Dillon; CASTRO, Celso (org.). Os anos de chumbo, Relume Dumará, Rio de Janeiro: 1994. , p. 74).

O repertório do discurso público militar sobre o uso da tortura possui algumas variações, por vezes contraditórias. Se em seus livros, Ustra descreve as organizações clandestinas de esquerda como um perigo real, o general Adyr Fiúza de Castro, emprega a imagem do uso de um “martelo-pilão” para matar uma “mosca”, como metáfora da repressão, tacitamente reconhecendo o uso da violência extrema ante a um oponente pouco ameaçador. Ambos, envolvidos em postos-chave do aparato repressivo, porém, coincidem em implicar a hierarquia militar no conhecimento e responsabilidade do que se fazia nos órgãos que comandavam, ainda que sem explicitar o que realmente se fazia: “Está frontispício de todo regulamento militar: o comandante é responsável por tudo aquilo que acontece ou deixa de acontecer sob seu comando” ( CASTRO; D’ARAUJO et al., 1994D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES Gláucio Ari Dillon; CASTRO, Celso (org.). Os anos de chumbo, Relume Dumará, Rio de Janeiro: 1994. , p. 71). Esse posicionamento contrasta com argumentos levantados por seus colegas de farda: “Eu realmente não posso afirmar que não houve torturas, mas também não posso acusar: ‘Se ele [Médici] era o presidente, era o responsável’. Não. Ele era o presidente, mas estávamos em estado de guerra” (PINHEIRO; D’ARAUJO et al., 1994, p. 143). Ou: “[...] nunca foi política, nem ordem, nem norma torturar ninguém. Houve tortura? Houve. Mas quem pode controlar uma pessoa na ponta de linha que não teve uma educação moral perfeita, e de origens as mais variadas?” (GONÇALVES; D’ARAUJO et al., 1994, p. 249). Responsáveis ou não das atitudes de seus subordinados, há um consenso de que não teria havido consigna por parte dos comandos para o emprego da violência: “[...] o governo tem uma posição institucional: é contra esse tipo de coisa” (ETCHEGOYEN; D’ARAUJO et al., 1994, p. 117).

Não admitida como prática, nessas entrevistas a defesa da tortura esgueira-se nas brechas de alguns depoimentos, como mal necessário, em circunstâncias específicas, para “evitar um mal maior”. Porém, no âmbito da conjectura, em situações isoladas e excepcionais: “Se uma neta minha for raptada e eu pegar um camarada que saiba onde ela está, ah! eu torturo mesmo, faço o diabo [...]” (CASTRO; D’ARAUJO et al., 1994D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES Gláucio Ari Dillon; CASTRO, Celso (org.). Os anos de chumbo, Relume Dumará, Rio de Janeiro: 1994. , p. 73). Justificada, nessas circunstâncias, para obter informações, é condenada quando aparece associada a comportamentos sádicos ou mórbidos, atribuídos aos “excessos”, como resultado do descontrole do agente repressivo na ponta do sistema. Por outro lado, ao mesmo tempo em que aparece em algumas falas como legítima em casos únicos, de gravidade extrema, em outras aparece de forma naturalizada e banalizada, às vezes pelo mesmo entrevistado: “Desde os esquimós até a China, todo mundo usa, quando necessário” (CASTRO; D’ARAUJO et al., 1994, p. 73). Ou: “seria mentira e até ingenuidade, [afirmar] que nunca houve tortura. E não só aqui. A Argentina fez barbaridades. Os americanos ensinam, os ingleses são mestres em ensinar como se deve arrancar confissões sob pressão, sob tortura [...]” (MENDES, D’ARAUJO et al., 1994, p. 175). Estratégia de banalização igualmente utilizada consiste em questionar o que significa tortura, por exemplo ao compará-la à vulnerabilidade da população frente ao crime organizado: “Não há poder público, não há polícia, não há segurança. [...] Tortura é não ter para quem apelar. É viver enjaulado, engradado, como está acontecendo nos edifícios e casas no Rio” (FONTOURA; D’ARAUJO et al., 1994, p. 96).

Em 2003, na esteira da comemoração dos 40 anos do golpe de 1964, a Biblioteca do Exército publicou um conjunto de 15 tomos, coordenados pelo general Aricildes de Moraes Motta, contendo 250 entrevistas com militares e civis: 1964 - 31 de março: o movimento revolucionário e a sua história. A coleção, criada para homenagear os “vitoriosos” da “revolução de 1964”, teria por público alvo não apenas a sociedade civil, mas a própria instituição: “[...] é lamentável o desconhecimento por parte da corporação da verdadeira versão dos fatos, muitas vezes objeto de ironia e até de maldosa crítica” (CORREA, 2003, p. 30 apudCHAVES, 2011CHAVES, Eduardo. “Do outro lado da colina”. 2011. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Unisinos, Porto Alegre, 2011., p. 33). Na abertura de cada volume, a ironia parte, contudo, do coronel Jarbas Passarinho. O tom indica o extremado incômodo dos militares partidários da ditadura com as políticas de reparação:

Diante disso, os vencedores pedem desculpas em nome das centenas dos que morreram certos de lutar pela Pátria e cujas famílias não mereceram receber indenizações. [...] São todos mortos-vivos a sofrer o ‘revanchismo’ dos que, derrotados pelas armas, são vitoriosos pela versão que destrói os fatos, nutrida no governo de esquerda moderada (PASSARINHO; MOTTA, 2003MOTTA, Aricildes (coord.). 31 de março: o movimento revolucionário e a sua história. 15vols. Rio de Janeiro: BibliEx, 2003., t. 1, p. 27).

A obra é uma contribuição institucional à “batalha da comunicação social”, uma resposta ao que chamam de “revanchismo” pós 1985, preocupada com a imagem do Exército e em firmar um balanço positivo do que chamam de “Revolução de 1964”.

Essas entrevistas, de maneira geral, não aprofundam nem o relato dos acontecimentos, nem a interpretação dos mesmos e pouco se diferenciam do repertório apresentado nos anos 1990. Nas declarações a tortura é identificada como como estratégia detratora dos perdedores, faltas isoladas de controle: “Caso tenha havido excessos, a prática não era institucional” (IBIAPINA; MOTTA, 2003MOTTA, Aricildes (coord.). 31 de março: o movimento revolucionário e a sua história. 15vols. Rio de Janeiro: BibliEx, 2003., t. 2, p. 191). Ou ocasionais acidentes de percurso, que não colocariam em xeque os benefícios de salvar a nação dos comunistas: “A Revolução cometeu alguns erros, mas esses foram irrelevantes em relação aos seus acertos” (MENDES; MOTTA, t. 2, p. 36). Ou seja, novamente a figura do efeito colateral: “Concordo com o antigo ditado: ninguém faz omeletes sem quebrar ovos” (ETCHEGOYEN; MOTTA, 2003MOTTA, Aricildes (coord.). 31 de março: o movimento revolucionário e a sua história. 15vols. Rio de Janeiro: BibliEx, 2003., t. 8, p. 186) A admissão mais incisiva, a destoar desse repertório, realiza-se de maneira oblíqua. Aparece na crítica que o general Octávio Pereira da Costa, que embora defenda a ditadura militar, critica a entrega da repressão aos militares. Não fala em tortura sistemática, porém elogia a iniciativa de Getúlio Vargas de encarregar às forças policiais as tarefas de perseguição política: “Fizeram barbaridades, fizeram horrores, mas o Exército de então foi preservado” (MENDES; MOTTA, 2003MOTTA, Aricildes (coord.). 31 de março: o movimento revolucionário e a sua história. 15vols. Rio de Janeiro: BibliEx, 2003., t. 2, p. 90). Ou seja, o equívoco para ele não está no emprego da violência repressiva, mas em que tenham sido os militares a fazê-lo. Operação curiosa, porque além de aceitar “barbaridades” e “horrores”, se forem perpetrados pela polícia, indiretamente reconhece que foi o que praticaram as FA durante a ditadura.

A volumosa empreitada bibliográfica do Exército representou simbolicamente o apoio institucional à comunidade repressiva, desde meados dos anos 1990 entrincheirada em sites, blogs e revistas dedicados à difusão de uma memória positiva da ditadura - Grupo Inconfidência (1994), Ternuma (1998), do grupo Terrorismo Nunca Mais, ou A verdade sufocadaUSTRA, Carlos Alberto Brilhante. A verdade sufocada. Brasília: Ser, 2006. (s/d). Parece bastante provável a hipótese de que a iniciativa tenha sido levada adiante como uma compensação pela não publicação, em período anterior, da obra Orvil. Tentativas de tomada do poder (DEL NERO et al., 2012DEL NERO, Agnaldo; MACIEL, Licio; CAMARGO, José Conegundes. Orvil. São Paulo: Schoba, 2012.), esforço iniciado pelo Centro de Informações do Exército (CIE), então comandado pelo general Leônidas Pires Gonçalves, para oferecer a versão da instituição sobre a ditadura. O projeto, uma espécie de relatório de mais novecentas páginas sobre o que teriam sido as diferentes tentativas da esquerda brasileira de tomar o poder, começou a ser executado em 1985. Pronto em 1988, não obteve autorização para ser publicado, sob a argumentação da necessidade de virar a página de um tema que poderia pôr em risco a estabilidade política (FIGUEIREDO, 2009FIGUEIREDO, Lucas. Olho por olho. Rio de Janeiro: Record, 2009., p. 119).

O Orvil é apresentado por seus autores como reação a uma guerra, nesse caso retórica, imposta pela ação do inimigo. Recusada a sua publicação, teve extratos reproduzidos em livros como A grande mentira (2001), do general Del Nero, Guerrilha do Araguaia: a grande verdade (2007) do coronel Madruga, Verdade Sufocada (2006) do coronel Ustra, A farsa do Araguaia (2007) e Guerrilha do Araguaia: relato de um combatente (2008MACIEL, Licio. Guerrilha do Araguaia: relato de um combatente. Rio de Janeiro: Corifeu, 2008.), do tenente-coronel Maciel (FIGUEIREDO, 2009FIGUEIREDO, Lucas. Olho por olho. Rio de Janeiro: Record, 2009., p. 128-129) e no site Ternuma. A íntegra da obra viria a público apenas em 2012, não por acaso ano da instalação da CNV. Sua publicação, portanto, foi parte do arsenal de um ativismo renovado dos grupos militares de ultradireita, travestido com a nova roupagem do combate ao “marxismo cultural”, entendido como a versão contemporânea da guerra psicológica supostamente movida pelas esquerdas. A conclusão de Orvil justifica a empreitada como resposta ao que teria sido “a mais cara e bem estruturada agressão psicológica que se tem notícia” - referindo-se à memória hegemônica construída em torno da ditadura -, com o intuito de afastar as FA das “missões de segurança interna” (DEL NERO et al., 2012DEL NERO, Agnaldo; MACIEL, Licio; CAMARGO, José Conegundes. Orvil. São Paulo: Schoba, 2012., p. 886).

A análise de seu papel deve ser feita em uma dupla chave temporal: a de seu momento de produção, nos primeiros anos de governo civil após a ditadura militar, e a da publicação, coincidindo com os inícios dos trabalhos da CNV. Se a sua publicação no momento do auge das políticas de Justiça de Transição é bastante significativa para efeitos da batalha das memórias, sobretudo tendo em conta a onda conservadora que varreria as ruas do país a partir das manifestações de 2013, seu conteúdo, no que concerne à retórica sobre a tortura, remete ao final dos anos 1980. Orvil trata as denúncias de torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados única e exclusivamente como propaganda político-ideológica, uma estratégia dos oponentes, no quadro da guerra revolucionária. O que varia, e possui algum interesse - particularmente como fonte de inspiração para distorcionismos e negacionismos da extrema direita contemporânea - são as razões pelas quais as esquerdas utilizariam o recurso das acusações de tortura:

Boa parte das denúncias de tortura no Brasil foi feita com estas motivações: atender a vaidades ou, como propaganda adversa, buscar denegrir, aos olhos da população brasileira e do mundo, os órgãos de segurança do País. Tais denúncias visavam à sua desmoralização e à intimidação, isto é, como instrumento de guerra psicológica (DEL NERO et al., 2012DEL NERO, Agnaldo; MACIEL, Licio; CAMARGO, José Conegundes. Orvil. São Paulo: Schoba, 2012., p. 158).

A série de revelações dos jornais Correio da Manhã e Última hora já em 1964, são descritas como “uníssima orquestração”, alegadamente desmentidas pela comissão nomeada pelo presidente, que conduziram à conclusão da inexistência de tortura (DEL NERO et al., 2012DEL NERO, Agnaldo; MACIEL, Licio; CAMARGO, José Conegundes. Orvil. São Paulo: Schoba, 2012. p. 184-5). A tortura não apenas é negada, mas rechaçada: Castelo Branco teria considerado “intoleráveis as práticas denunciadas” (DEL NERO et al., 2012 p. 184) e “não compactuava com essa prática” (DEL NERO et al., 2012 DEL NERO, Agnaldo; MACIEL, Licio; CAMARGO, José Conegundes. Orvil. São Paulo: Schoba, 2012.p. 191). As campanhas internacionais movidas por exilados e organizações de defesa dos direitos humanos no exterior, foram caracterizadas como “difamatórias”, parte da ação de “terroristas” brasileiros em outros países (DEL NERO et al., 2012 DEL NERO, Agnaldo; MACIEL, Licio; CAMARGO, José Conegundes. Orvil. São Paulo: Schoba, 2012.p. 491). Quanto à atitude das organizações de esquerda, a tortura seria um pretexto para camuflar a própria incompetência. (DEL NERO et al., 2012 DEL NERO, Agnaldo; MACIEL, Licio; CAMARGO, José Conegundes. Orvil. São Paulo: Schoba, 2012.p. 680) Outra função, seria a de gerar um “clima de revolta no meio estudantil”, para mantê-lo em constante estado de ebulição. A estratégia seria, ainda, fruto de recomendação das organizações de esquerda para que seus militantes se livrassem das acusações diante da Justiça Militar (DEL NERO et al., 2012 DEL NERO, Agnaldo; MACIEL, Licio; CAMARGO, José Conegundes. Orvil. São Paulo: Schoba, 2012.p. 811), “justificar a tibieza” do comportamento na prisão ante os companheiros (DEL NERO et al., 2012 DEL NERO, Agnaldo; MACIEL, Licio; CAMARGO, José Conegundes. Orvil. São Paulo: Schoba, 2012.p. 778) e incutir nos militantes uma determinada imagem da repressão, para induzi-los a “resistir à prisão a todo o custo” (DEL NERO et al., 2012 DEL NERO, Agnaldo; MACIEL, Licio; CAMARGO, José Conegundes. Orvil. São Paulo: Schoba, 2012.p. 809).

Insinua-se que nem havia necessidade do uso da violência: “Nos interrogatórios, era comum esses militantes despreparados, sem convicção, ‘entregarem’ tudo o que sabiam quando caíam em contradições ou quando eram postos ante evidências” (DEL NERO et al., 2012DEL NERO, Agnaldo; MACIEL, Licio; CAMARGO, José Conegundes. Orvil. São Paulo: Schoba, 2012. p. 808). Dentro dessa lógica, até o suicídio é caracterizado como “instrumento da guerra psicológica”, por ser apresentado como “morto por tortura nos órgãos de segurança”. Neste ponto, reconhecem que

Convenhamos, porém, que se os componentes dos órgãos de segurança eram tão cruéis e desalmados, como dizia a propaganda adversa, haviam mil maneiras menos comprometedoras de dar ‘sumiço’ em alguém. O ‘suicidar’ alguém sob sua guarda na prisão está além da ‘burrice’ admitida (DEL NERO et al., 2012DEL NERO, Agnaldo; MACIEL, Licio; CAMARGO, José Conegundes. Orvil. São Paulo: Schoba, 2012. p. 809).

Palavras deles... Limitado a negar a existência da violência repressiva, o Orvil apresenta um conjunto de táticas discursivas que será amplamente utilizado nos livros publicados por expoentes da comunidade repressiva, nas entrevistas concedidas ao CPDOC nos anos 1990, na obra 31 de março e mesmo nas declarações de repressores na CNV. Pode, assim, ser considerado a matriz da estratégia de transformar denúncias contra si em acusações ao campo adversário.

Quando os militares começaram a ser chamados - e posteriormente convocados - a comparecer para dar declarações na CNV, encontravam-se bastante acuados no cenário da guerra de memórias. Alguns deles estavam sendo simultaneamente alvo de investigações por parte do Ministério Público Federal e compareceram à Comissão, em particular no caso das audiências abertas, gravadas e transmitidas pela internet, cientes de estarem sob o escrutínio da opinião pública (CHIRIO; JOFFILY, 2016CHIRIO, Maud; JOFFILY, Mariana. La verdad de los verdugos. Las comparecencias de los agentes de la represión ante la Comissão Nacional da Verdade de Brasil. Rubrica Contemporanea, Barcelona, v. 5, n. 9, 2016. p. 11-33. Disponível em: https://revistes.uab.cat/rubrica/article/view/v5-n9-chirio-joffily/109-pdf-es . Acesso em: 10 mar. 2022.
https://revistes.uab.cat/rubrica/article...
, p. 28). Entre os que se apresentaram, frequentes eram as alegações de esquecimento - pela idade, pelos anos transcorridos - ou desconhecimento dos meandros repressivos - pela compartimentação da área de informações, por sua baixa patente, ou por terem desenvolvido funções nas quais não lidavam diretamente com os detidos políticos. Também invocaram com frequência o direito legal de permanecer em silêncio, frente ao que consideravam uma espécie de tribunal simbólico do “revanchismo” de seus inimigos de outrora.

Examinadas as múltiplas formas de negação, interessa identificar neste novo contexto, nos casos em que a violência do Estado foi ao menos em parte reconhecida, o repertório utilizado para referir-se a ela ou justificá-la.2 2 Há exceções em termos de admissão do uso do método: o sargento Marival Dias Chaves em declaração à Veja em 1992, mas não como partícipe e o tenente-coronel Paulo Malhães, que reconheceu ter praticado tortura, ainda que “pouco” e antes de ter “evoluído.” (JOFFILY; CHIRIO, 2021). No caso da CNV, o foco estava na localização dos desaparecidos políticos, de modo que além do tema da tortura, o do aniquilamento de opositores políticos esteve bastante presente. Neste ponto, as mortes reconhecidas foram sempre referidas pelos militares como ocorridas em situação de combate, defensáveis em uma guerra. Sem novidade, portanto, em relação ao repertório aqui comentado. Quanto à tortura, em alguns casos foi atribuída a outros grupos - polícia civil, ou DOPS - que não os órgãos militares (CHIRIO; JOFFILY, 2016CHIRIO, Maud; JOFFILY, Mariana. La verdad de los verdugos. Las comparecencias de los agentes de la represión ante la Comissão Nacional da Verdade de Brasil. Rubrica Contemporanea, Barcelona, v. 5, n. 9, 2016. p. 11-33. Disponível em: https://revistes.uab.cat/rubrica/article/view/v5-n9-chirio-joffily/109-pdf-es . Acesso em: 10 mar. 2022.
https://revistes.uab.cat/rubrica/article...
, p. 23-4). As defesas, sempre veladas, da prática, em nenhum momento foram acompanhadas do reconhecimento de sua utilização como técnica sistemática e programática. Buscaram, todavia, marcar posição na guerra da memória, insistindo na periculosidade e no caráter abominável de seus oponentes, adjetivados como pessoas que estariam “à procura de implantar um governo ditatorial”, ou “bandidos”.

Neste campo bélico, tratava-se não apenas de afirmar-se diante dos oponentes, mas também dos próprios companheiros e da instituição armada, como fez Ustra ecoando o general Fiúza de Castro, ao evocar a responsabilidade da cadeia de comando: “Quem tem que estar aqui é o Exército brasileiro [...] que assumiu por ordem do presidente da República, a ordem de combater o terrorismo. Eu sou dos quais cumpriram todas as ordens. Ordens legais” (USTRA, 2013 apud, CHIRIO; JOFFILY, 2016CHIRIO, Maud; JOFFILY, Mariana. La verdad de los verdugos. Las comparecencias de los agentes de la represión ante la Comissão Nacional da Verdade de Brasil. Rubrica Contemporanea, Barcelona, v. 5, n. 9, 2016. p. 11-33. Disponível em: https://revistes.uab.cat/rubrica/article/view/v5-n9-chirio-joffily/109-pdf-es . Acesso em: 10 mar. 2022.
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, p. 28). Sem assumir o uso da tortura, Ustra afirma a sua institucionalidade. Desse modo, justifica os seus atos e de seus comandados, sem jamais explicitá-los, na figura de um cumpridor de ordens superiores e “legais”. Porém, não utiliza esse argumento clássico como outrora o fizeram militares nazistas para escapar dos rigores da Justiça, e sim para validar seus atos de militar disciplinado, respeitador da hierarquia e, portanto, legítimo e honrado membro do Exército.

Vale ainda mencionar o emprego de um expediente, já utilizado nos anos 1990, de relativizar a gravidade da tortura descaracterizando-a completamente ao compará-la com situações relacionadas a problemas graves da administração pública, como morrer em uma fila de hospital ou temer ser alvo da criminalidade urbana. Mais grave é o recurso da apologia velada ao uso da violência na época, contra os “subversivos”, e hoje, contra o crime: “É uma guerra que está aí também agora. Como será que o policial do BOPE chega num lugar desses?” (GUIMARÃES, apudCHIRIO; JOFFILY, 2016CHIRIO, Maud; JOFFILY, Mariana. La verdad de los verdugos. Las comparecencias de los agentes de la represión ante la Comissão Nacional da Verdade de Brasil. Rubrica Contemporanea, Barcelona, v. 5, n. 9, 2016. p. 11-33. Disponível em: https://revistes.uab.cat/rubrica/article/view/v5-n9-chirio-joffily/109-pdf-es . Acesso em: 10 mar. 2022.
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, p. 30). Justifica-se a violência passada e presente, sem chegar a admiti-la.

Pode-se argumentar que na CNV estes homens tão orgulhosos de seus atos estivessem em condições desfavoráveis para atuar efetivamente na guerra de memórias, optando por um recuo tático. Contudo, o breve histórico aqui apresentado demonstra que durante essas décadas, incluindo os anos de plena atuação do aparato repressivo sob a ditadura militar, nos quais a tortura era ensinada em cursos voltados para militares e policiais e quotidianamente aplicada por agentes do Estado, nunca houve reivindicação explícita e sistemática de seu uso. A prática seguiu moralmente inconfessável e o assassinato apenas justificável em condições de confronto - como aliás segue, nos dias atuais, nas versões das polícias para massacres de populações periféricas.

Reforça esse argumento o manifesto à nação assinado por generais ex-integrantes do Alto Comando do Exército, em 2014, diante da declaração do então ministro da Defesa, Celso Amorim, de que as FA teriam praticado violações aos direitos humanos. No texto, alega-se que a CNV estaria desconsiderando a Lei de Anistia e tratando “uma grei constituída de guerrilheiros, assaltantes, sequestradores e assassinos, como se fossem heroicos defensores de uma ‘democracia’ que, comprovadamente não constava dos ideais da luta armada [...]”. Para em seguida, asseverar peremptoriamente: “Nós, que vivemos integralmente este período, jamais aprovamos qualquer ofensa à dignidade humana, bem como quaisquer casos pontuais que, eventualmente surgiram.” A formulação, tortuosa, parece aludir aos famosos “excessos”, embora não fique muito claro se negam ou afirmam a existência desses “casos pontuais” (O Estado de S.Paulo on line, 26 set. 2014O ESTADO DE S. PAULO. “Jamais aprovamos qualquer ofensa à dignidade humana”, dizem generais em manifesto, 26 abr. 2014. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/jamais-aprovamos-qualquer-ofensa-a-dignidade-humana-dizem-generais-em-manifesto/ . Acesso em: 15 ago. 2022.
https://www.estadao.com.br/politica/jama...
).

O velho novo, com um tuíste

Com a ascensão política de Bolsonaro, assistimos um ponto de virada do discurso público sobre as violências cometidas pelo Estado durante a ditadura militar, em conexão direta com uma concepção de ordem e segurança bélica e punitivista. Neste sentido, o fenômeno Bolsonaro é radicalmente novo na história da tradição política brasileira, não tanto por valorizar a ditadura, ou seus métodos, mas por reivindicar aberta, explícita e reiteradamente o uso da tortura e do assassinato de opositores, algo que nem os generais presidentes, nem os agentes repressivos da ditadura nunca fizeram.

Bolsonaro, como se sabe, iniciou sua trajetória no Exército: membro da Brigada Paraquedista, formou-se nos anos 1970-80 dentro do caldo de cultura contrainsurgente e antirrevolucionário construído e institucionalizado durante a ditadura, compartilhando a “comunidade de memórias” dos militares que se envolveram na repressão política (BAUER, 2019BAUER, Caroline. La dictadura cívico-militar brasileña en los discursos de Jair Bolsonaro: usos del pasado y negacionismo. Relaciones Internacionales. La Plata, vol. 28, n. 57, 2019, p. 37-51. Disponível em: https://revistas.unlp.edu.ar/RRII-IRI/article/view/7479 . Acesso em 30 mar. 2022.
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, p. 43-44). Indisciplinado a ponto de planejar o uso de bombas em quartéis e academias militares como instrumento de reivindicação salarial - possivelmente emulando seus ídolos do CIE, autores de diversos atentados no período anterior ao AI-5 e durante a distensão política -, não foi longe nessa carreira, porém construiu sua identidade política como porta-voz de militares e policiais. Em diversas ocasiões pronunciou-se favorável à violência extrema, tanto por parte do Estado, quanto como atitude de indivíduos particulares, aos quais facilitou consideravelmente, por meio de legislação, o acesso a armamentos.

Em abril de 1999, quando era deputado federal pelo Partido Progressista Brasileiro, diante da recusa do ex-presidente do Banco Central Chico Lopes de depor na CPI dos Bancos no Senado, declarou ao programa Câmara Aberta, da TV Band: “Ele merecia isso: pau-de-arara. Funciona. Eu sou favorável à tortura. Tu sabe disso. E o povo é favorável a isso também” (Bolsonaro apudCarta Capital on line, 29 out. 2018CARTA CAPITAL. Bolsonaro em 25 frases polêmicas, 29 out. 2018. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-em-25-frases-polemicas/ . Acesso em: 15 ago. 2022.
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) No mês seguinte, voltou à carga, no mesmo programa, sugerindo o extermínio como instrumento de ação política: “Através do voto você não vai mudar nada nesse país [...] Só vai mudar, infelizmente, se um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil, começando com o FHC [...]” Declarou, em 2008, no Clube Militar (RJ), em ato que protestava contra o posicionamento dos militares contrários à revisão da Lei de Anistia, e em 2016, no programa Pânico, da Jovem Pan, que “O erro da ditadura foi torturar e não matar”. Dois anos mais tarde, em ato de campanha em setembro, em Rio Branco, voltou à carga: “Vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre” (Bolsonaro apudCarta Capital on line, 29 out. 2018CARTA CAPITAL. Bolsonaro em 25 frases polêmicas, 29 out. 2018. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-em-25-frases-polemicas/ . Acesso em: 15 ago. 2022.
https://www.cartacapital.com.br/politica...
).

Recém eleito, fez pronunciamento em outubro de 2018, ameaçando de morte os militantes do Partido dos Trabalhadores, com alusão a um dos locais que durante a ditadura militar teria servido para executar opositores: “Petralhada, vai tudo vocês [sic] pra ponta da praia” (Bolsonaro apudAZEVEDO, 2018AZEVEDO, Reinaldo. Leia a íntegra do discurso de Bolsonaro transmitido ao vivo durante manifestação. Uol, 22 out. 2018. Disponível em: https://reinaldoazevedo.blogosfera.uol.com.br/2018/10/22/leia-a-integra-do-discurso-de-bolsonaro-transmitido-ao-vivo-durante-manifestacao/ . Acesso em: 15 ago. 2022.
https://reinaldoazevedo.blogosfera.uol.c...
). Presidente, em 2019, em suas redes sociais, voltou a ameaçar com a “ponta da praia” servidores públicos federais que se opusessem ao “progresso” (Bolsonaro apudAMADO, 2019AMADO, Guilherme. Bolsonaro sugere lugar de execução da ditadura para servidores públicos. O Globo, 1o nov. 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/epoca/guilherme-amado/bolsonaro-sugere-lugar-de-execucao-da-ditadura-paraservidores-publicos-1-24056200 . Acesso em: 15 ago. 2022.
https://oglobo.globo.com/epoca/guilherme...
). No mês seguinte, advertiu que utilizaria o pau-de-arara para punir ministros que se envolvessem em corrupção (O Globo on line, 12 dez. 2019O GLOBO. Bolsonaro diz que colocará no pau-de-arara ministro que se envolver em corrupção, 12 dez. 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/bolsonaro-diz-que-colocara-no-pau-de-arara-ministro-que-se-envolver-em-corrupcao-24134731 . Acesso em: 15 ago. 2022.
https://oglobo.globo.com/politica/bolson...
).

Bolsonaro também fez diversos gestos em tributo a conhecidos integrantes do aparato repressivo, como o coronel Sebastião Curió, de maneira a deixar inequívocas demonstrações de seu apoio à ditadura militar e, mais do que isso, aos métodos de tortura e assassinato utilizados no período. Assim como alguns militares em declarações da CNV estabeleceram pontes entre a violência do Estado contra opositores políticos e a da polícia em ações contra cidadãos considerados suspeitos, Bolsonaro emitiu inúmeros comentários em favor do excludente de ilicitude: em 2018, em entrevista ao Jornal Nacional da TV Globo, afirmou “[O policial] entra, resolve o problema e, se matar 10, 15 ou 20, com 10 ou 30 tiros cada um, ele tem que ser condecorado, e não processado” (Bolsonaro apudCarta Capital on line, 29 out. 2018CARTA CAPITAL. Bolsonaro em 25 frases polêmicas, 29 out. 2018. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-em-25-frases-polemicas/ . Acesso em: 15 ago. 2022.
https://www.cartacapital.com.br/politica...
). Em 1992, no primeiro mandato como deputado federal pelo Partido Democrata Cristão, seu comentário, diante dos 111 mortos contabilizados então no Massacre do Carandiru, foi que “Morreram poucos. A PM tinha que ter matado mil” (Bolsonaro apudCarta Capital on line, 29 out. 2018CARTA CAPITAL. Bolsonaro em 25 frases polêmicas, 29 out. 2018. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-em-25-frases-polemicas/ . Acesso em: 15 ago. 2022.
https://www.cartacapital.com.br/politica...
).

Ao reivindicar publicamente o uso da violência como arma legítima contra os seus opositores, Bolsonaro “rompe o silêncio”, coisa que Ustra anunciou, mas jamais cumpriu. Implode, igualmente, o enquadramento da memória militar, ciosa de manter a boa imagem do Exército como instituição de Estado e temerosa do eterno risco de uma revisão da interpretação da Lei de Anistia, a pender como uma espada de Dâmocles sobre os agentes repressivos. Eleito presidente da República, com aplauso de uma sólida base de apoio, Bolsonaro deixa de ser um fenômeno isolado e extravagante, para tornar-se um dos principais símbolos de uma vertente do pensamento de direita brasileiro que não ousava defender abertamente práticas repressivas sistematicamente executadas durante a ditadura e que hoje seguem correntes na segurança pública. Uma vertente que evidentemente transcende o personagem e foi forte o suficiente para eleger um representante ao mais elevado cargo do país e mantê-lo no governo, a despeito de inúmeras demonstrações de inépcia e ausência de decoro. Pode-se argumentar que nem todas as forças políticas que sustentaram Bolsonaro na presidência adotam esse anseio punitivista e autoritário que ele representa e que está há muito tempo presente em um setor da sociedade brasileira. Porém, há evidências de que não se opuseram suficientemente a essa agenda a ponto de tirá-lo do governo.

Assim, embora o fenômeno Bolsonaro signifique uma espécie de retorno do tema da ditadura, que em outros momentos parecia um tópico distante no passado e até superado, representa uma enorme novidade. Isso porque a sociedade brasileira sempre conviveu com o paradoxo de ter instituições de Estado que praticam com frequência a tortura e a execução de indivíduos como método de sujeição e de manutenção de uma ordem social excludente, - e isso não apenas durante a ditadura - ao mesmo tempo em que reiteradamente nega, no âmbito do discurso público, a sistematicidade e o caráter estrutural dessas práticas de poder. Apesar de vivermos em uma sociedade com traços de autoritarismo de longa duração, que amiúde elege personagens associados à violência de Estado e concede enorme audiência a programas policialescos, é a primeira vez que temos um presidente da República que reivindica abertamente a violência como elemento programático. Não se trata mais de falar em “abusos”, em “autonomia” não desejada, de “maçãs podres”, de “sadismo” de um indivíduo particular, mas de mandar os opositores para a Ponta da Praia. Esse é um fenômeno radicalmente novo - assim como a adoção aberta e orgulhosa de uma identidade de extrema-direita conservadora radical. O que significa a eleição de um presidente da República que explicita a violência em seu discurso público e estimula que outros políticos sigam a mesma conduta? Seria apenas um hiato na tradição brasileira de ocultação da violência social, o fim do paradoxo brasileiro, com a explicitação discursiva de uma prática social recorrente, a vocalização performática do que sempre se buscou ocultar, ou, mais grave, sinal de uma guinada sem precedentes em direção a um autoritarismo escancarado e socialmente autorizado? Se o Brasil “cordial” tortura quotidianamente os seus filhos, o que fará um Brasil que não teme mostrar seus dentes arreganhados?

Considerações finais

Resta ainda a questão da centralidade da violência no discurso de Bolsonaro, em conexão com essa temporalidade peculiar que é o atualismo, entendido como uma historicidade (ARAUJO; PEREIRA, 2018ARAUJO, Valdei; PEREIRA, Mateus. Atualismo 1.0. Mariana: Seminário Brasileiro de Teoria e História da Historiografia, 2018.) - tendo seus efeitos na historiografía, mas não se circunscrevendo apenas ao campo da produção do conhecimento histórico. Sua marca é o mecanismo da atualização permanente e a ideia de uma reprodução automática da realidade, cujas epítomes são os dispositivos tecnológicos e as redes sociais - embora não necessariamente se confunda com as mesmas. Bolsonaro não é atualista apenas no que se refere à sua relação com a ditadura militar, o atualismo é uma estratégia política que demarca suas ações em outros temas e territórios, como, por exemplo, a permanente produção de notícias falsas (ARAUJO; PEREIRA, 2020ARAUJO, Valdei; PEREIRA, Mateus. Vozes sobre Bolsonaro: esquerda e direita em tempo atualista. In: KLEM, Burna et al. (org.). Do fake ao fato. Vitória: Milfontes, 2020. p. 125-150.).

Para Fisher (2022FISHER, Mark. Fantasmas da minha vida. São Paulo: Autonomia Literária , 2022.), haveria uma temporalidade peculiar ao século XXI em que o passado parece infinitamente próximo do presente, disponível para intermináveis atualizações - refere-se à música, numa leitura política, em que, diferentemente dos anos 1960 e 1970, marcados por rupturas em que o novo emergia como objetivo da criação artística, a produção cultural do século XXI é caracterizada por releituras, montagens com elementos retirados de um passado recente. Haveria, assim, uma espécie de eterna década de 1970, que apareceria na cultura atual como uma coleção de promessas de futuros não realizados.3 3 O autor refere-se à década de 1970 inglesa - Estado de bem-estar social abolido com o neoliberalismo dos 80. No Brasil de Bolsonaro vemos, num espectro político oposto ao do autor, a mesma ideia: que os anos 1970 deixaram sonhos de futuro a serem reencenados no presente. Fisher (2022FISHER, Mark. Fantasmas da minha vida. São Paulo: Autonomia Literária , 2022., p. 27) fala de um tempo complexo, em que se misturam sensações de anacronismo e inércia. O paradoxo é que o tempo parece suspenso, mas a vida continua num fluxo perpétuo de novidades, que por sua vez se apresentam como releituras do passado. Uma espécie de cancelamento do futuro, tal como pensado pelo conceito moderno de história.

Podemos ver essa mistura de inércia e anacronismo na tão citada invocação de Ustra por Bolsonaro, que remete a uma atualização estranhamente deslocada no tempo - ao menos, para uma sensibilidade historicista. Não se trata, nesse e em tantos outros gestos de Bolsonaro que apontam para o passado recente, de mera reprodução do mesmo, a atualização efetua um deslocamento temporal. Temos, assim, uma década de 1970 estranhamente descolada de sua situação histórica, recuperada menos como experiência situada num outro tempo e mais como espécie de acervo disponível para novas atualizações. Daí a existência de algo fantasmagórico, destituído de espessura histórica, de eventos e personagens reivindicados, como o AI-5 e Ustra.

Por que o que se atualiza é justamente a face mais brutal da ditadura militar? Não há uma conexão necessária entre atualismo e violência. Aqui, temos que passar pelas escolhas políticas de Bolsonaro, bem como por sua leitura histórica desse período, compartilhada por grupos de extrema direita que se mantiveram mais ou menos subterrâneos ao longo da chamada Nova República: há uma ideia da ditadura militar como projeto inacabado, assim como algo a ser atualizado, no presente. Ela não teria cumprido completamente a sua missão. Isso, diferentemente do discurso historicista que a situa como algo coerente com seu tempo, um tempo que já passou, como um ciclo histórico completo, fechado em si mesmo. É como se os supostos perigos políticos das décadas de 1960 e 1970 estivessem ainda num horizonte do presente, mesmo que sob outras roupagens - como o marxismo cultural, por exemplo. Trata-se, enfim, de uma sensibilidade em que a ação violenta é tomada como uma chave de atualização do passado - e também nisso uma reencenação do passado.

Referências

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  • AMADO, Guilherme. Bolsonaro sugere lugar de execução da ditadura para servidores públicos. O Globo, 1o nov. 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/epoca/guilherme-amado/bolsonaro-sugere-lugar-de-execucao-da-ditadura-paraservidores-publicos-1-24056200 Acesso em: 15 ago. 2022.
    » https://oglobo.globo.com/epoca/guilherme-amado/bolsonaro-sugere-lugar-de-execucao-da-ditadura-paraservidores-publicos-1-24056200
  • ARAUJO, Valdei; PEREIRA, Mateus. Atualismo 1.0. Mariana: Seminário Brasileiro de Teoria e História da Historiografia, 2018.
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  • AZEVEDO, Reinaldo. Leia a íntegra do discurso de Bolsonaro transmitido ao vivo durante manifestação. Uol, 22 out. 2018. Disponível em: https://reinaldoazevedo.blogosfera.uol.com.br/2018/10/22/leia-a-integra-do-discurso-de-bolsonaro-transmitido-ao-vivo-durante-manifestacao/ Acesso em: 15 ago. 2022.
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  • BAUER, Caroline. La dictadura cívico-militar brasileña en los discursos de Jair Bolsonaro: usos del pasado y negacionismo. Relaciones Internacionales. La Plata, vol. 28, n. 57, 2019, p. 37-51. Disponível em: https://revistas.unlp.edu.ar/RRII-IRI/article/view/7479 Acesso em 30 mar. 2022.
    » https://revistas.unlp.edu.ar/RRII-IRI/article/view/7479
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  • USTRA, Carlos Alberto Brilhante. A verdade sufocada. Brasília: Ser, 2006.
  • 1
    Essa dimensão seria retomada pelo bolsonarismo em sua reivindicação da lógica do confronto.
  • 2
    Há exceções em termos de admissão do uso do método: o sargento Marival Dias Chaves em declaração à Veja em 1992, mas não como partícipe e o tenente-coronel Paulo Malhães, que reconheceu ter praticado tortura, ainda que “pouco” e antes de ter “evoluído.” (JOFFILY; CHIRIO, 2021JOFFILY, Mariana; CHIRIO, Maud. Declaraciones de un perpetrador. Contemporanea, Montevidéu, ano 4, v. 14, p. 45-63, 2021. Disponível em: https://ojs.fhce.edu.uy/index.php/cont/article/view/1114/1227 . Acesso em: 10 mar. 2022.
    https://ojs.fhce.edu.uy/index.php/cont/a...
    ).
  • 3
    O autor refere-se à década de 1970 inglesa - Estado de bem-estar social abolido com o neoliberalismo dos 80. No Brasil de Bolsonaro vemos, num espectro político oposto ao do autor, a mesma ideia: que os anos 1970 deixaram sonhos de futuro a serem reencenados no presente.

INFORMAÇÕES ADICIONAIS

  • Endereço para correspondência

    Mariana Joffily Departamento de História Centro de Ciências Humanas e da Educação (FAED) Universidade do Estado de Santa Catarina Av. Madre Benvenuta, 2007 - Itacorubi 88035001 - Florianópolis, SC - Brasil
  • Financiamento

    Por parte de Mariana Joffily é bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. Por parte de Daniel Faria, sem financiamento. Por parte de Paula Franco, o presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq. Bolsista CNPq (processo 140402/2020-9).
  • Aprovação no comitê de ética

    Não se aplica.
  • Modalidade de avaliação

    Duplo-cega por pares.
  • Contexto de pesquisa

    O artigo deriva da interlocução entre os autores no âmbito do processo de orientação de doutorado da historiadora Paula Franco na UnB, sendo o Prof. Dr. Daniel Faria o orientador principal e a Profa. Dra. Mariana Joffily a co-orientadora. Por parte de Mariana Joffily, as reflexões derivam de pesquisa sobre a trajetória profissional de agentes repressivos durante a ditadura militar e suas declarações públicas no contexto dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade. Dois artigos, escritos em coautoria com Maud Chirio, contribuíram para as reflexões aqui apresentadas: um sobre as declarações de agentes repressivos na CNV, publicado na Revista Rubrica Contemporanea (Espanha) e outro sobre as declarações de Paulo Malhães, publicado na revista Contemporanea (Uruguai). Um dos argumentos do artigo em submissão foi apresentado no Colóquio Internacional “Palavra de Perpetrador. Modos de usar na historiografia, na Justiça, no jornalismo, no Brasil e na Argentina”, ocorrido nos dias 26 e 27 de setembro de 2022, organizado em conjunto com Maud Chirio. Por parte de Daniel Faria, sua discussão vem de trabalhos sobre a questão do Tempo Histórico, em particular no período da Ditadura Militar. Vem, também, de sua atuação no projeto de pesquisa “Modos de atualizar e arqueologia do atualismo: história dos conceitos de atual, atualidade e atualização no Brasil, México, Argentina e Portugal entre 1850-1950”, pelo qual vem produzindo artigos científicos e trabalhos a serem apresentados em eventos acadêmicos. Uma discussão inicial sobre esse tema, em relação à figura de Jair Bolsonaro, foi publicada sob forma de capítulo no livro Do Fake ao Fato (organizado por Mateus Pereira, Valdei Araujo e Bruna Klem, publicado em 2020 pela Editora Milfontes). Por parte de Paula Franco, houve um primeiro acúmulo inicial em relação ao tema durante o processo de pesquisa e redação para o artigo “As políticas de memória, verdade, justiça e reparação no primeiro ano do governo Bolsonaro: entre a negação e o desmonte”, publicado no periódico Mural Internacional (vol. 11, 2020) e do capítulo de livro A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Comissão de Anistia no primeiro ano do governo Bolsonaro, parte da coletânea Espectros da Ditadura (organizado por Edson Teles e Renan Quinalha pela Editora Autonomia Literária, 2020).
  • Disponibilidade de dados de pesquisa e outros materiais

    Os conteúdos subjacentes ao artigo estão nele contidos e podem ser encontrados em publicações bibliográficas.

Editado por

Editores responsáveis

Flávia Varella - Editora-chefe Breno Mendes - Editor executivo

Disponibilidade de dados

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Out 2022
  • Revisado
    10 Jan 2023
  • Aceito
    23 Jan 2023
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