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A história é feita de histórias: a irrupção do novo segundo Alexandre Koyré

History is made of stories: the irruption of the new according to Alexandre Koyré

Resumo

A partir de uma análise ampliada da obra historiográfica de Alexandre Koyré, este artigo propõe analisar o fundamento da descontinuidade temporal que a marca. Aqui, uma análise estendida de sua obra implica ir além de seus trabalhos sobre história das ciências, atentando-se àqueles sobre a história do pensamento místico e filosófico. Neles, percebemos claramente a admissão de uma concepção de liberdade como capacidade humana de construir e modificar sua própria natureza. A tese defendida neste artigo é a de que tal concepção é o fundamento da história marcadamente “descontinuísta” de Koyré, sua história das revoluções científicas, cujos personagens se autoformam, constroem as próprias bases de sua razão, a partir de seu complexo contexto histórico. Em certo sentido, este trabalho precisa o que Roger Chartier dizia ser a “maneira de Koyré” pensar os “processos de transformação” em história.

Palavras-chave:
História da historiografia; Liberdade; Tempo

Abstract

Based on an expanded analysis of Alexandre Koyré’s historiographical work, this article proposes to analyze the basis of the temporal discontinuity that marks it. Here, an extended analysis of his work implies going beyond his works on the history of sciences, paying attention to those on the history of mystical and philosophical thought. In them, we clearly see the admission of a conception of freedom as the human capacity to construct and modify its own nature. The thesis defended in this article is that such a conception is the foundation of Koyré’s markedly “discontinuist” history, his history of scientific revolutions, whose characters self-form, construct the very bases of their reason, based on their complex historical context. In a sense, this work needs what Roger Chartier said was “Koyré’s way” of thinking about “processes of transformation” in history.

Keywords:
History of historiography; Freedom; Time

Ter escutado os epistemólogos deveria, igualmente, ter permitido [à École des Annales] colocar de outra forma o problema que toda história das mentalidades tem em mira, ou seja, as razões e as modalidades de passagem de um sistema a outro. Aí, mais uma vez, a constatação das mutações através da enumeração dos objetos ou dos motivos continua a revelar-se impotente para apreender os processos de transformação que só podem ser compreendidos quando se pensa, à maneira de Koyré, a dependência juntamente com a autonomia das diferentes áreas do saber. A passagem de um sistema de representações a outro pode, desde logo, ser entendida simultaneamente como uma ruptura radical (nos saberes, mas também nas próprias estruturas de pensamento) e como um processo feito de hesitações, de retrocessos, de bloqueios.

(Roger Chartier, A história cultural: entre práticas e representações, 2002CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difusão Editorial, 2002., p. 52)

Embora tenha se dedicado a um campo preciso de investigação, aparentemente reservado a especialistas de outras áreas, Alexandre Koyré, matemático e filósofo de formação, foi um historiador. Ao colocá-lo ao lado dos Annales, para criticá-los certamente, Chartier faz-nos atentar para esse simples fato do qual ainda nos esquecemos ao escrever a história da historiografia do século XX. Ainda que tenham sido contemporâneos de Febvre, praticamente ninguém cita a obra historiográfica de Gaston Bachelard ou Koyré quando se põe a falar do tema. Na contramão dessa postura ainda recorrente, Chartier não só as cita - em particular aquela de Koyré - como ainda lhe confere uma importância fundamental. Koyré apresenta em seu trabalho uma solução para o principal problema da história escrita pelos Annales: como explicar a mudança, sinal do tempo, “a passagem de um sistema a outro”, ou se quisermos, de um “período” a outro. Na esteira de Chartier, este artigo tem como objetivo apresentar em detalhes o que foi “a maneira de Koyré” pensar “os processos de transformação” na história. Para isso, apresento primeiro o motivo pelo qual ele se lançou ao estudo do que em seu entender foi o maior momento de mudança na história do pensamento científico. Depois, exponho a concepção que orientou e fundamentou sua maneira de compreender tais transformações - uma ideia sobre a liberdade humana -, a qual só pode ser vista em sua plenitude observando também outros trabalhos que escreveu, para além daqueles consagrados à história das ciências. Por fim, apresento uma análise minuciosa da aplicação daquela concepção de liberdade em ato, indicando quando e onde ela aparece ao longo de seus Études Galiléennes e, posteriormente, seu From the closed world to the infinite universe, livro ao qual Chartier se refere diretamente no trecho acima, em nota de rodapé.

As crises de outrora e uma ideia de liberdade

Nascido em 1892, Alexandre Koyré viveu no conturbado contexto do início do século XX, o das crises da razão (CASTELLI GATTINARA, 1996CASTELLI GATTINARA, Enrico. L’idée de la synthèse: Henri Berr et les crises du savoir dans la première moitié du XXe siècle. Revue de synthèse, Paris, p. 21-38, 1996., p. 23-25). Bem familiar aos historiadores das ciências, essas crises provocadas pelo aparecimento de novas teorias científicas - como por exemplo o aparecimento das geometrias não euclidianas, a descoberta dos paradoxos por Russell, a teoria da relatividade de Einstein e a física quântica de Heisenberg - foram marcadas pelo desmoronamento de categorias explicativas então tidas como fundamentais, como a causalidade e o determinismo, categorias através das quais se entendiam e se organizavam os fenômenos, consideradas como basilares da razão. Daí a ideia de que a própria razão estava em crise. “O que representam as teorias científicas contemporâneas para a teoria do conhecimento?”, perguntava Phillipp Frank, no Primeiro Congresso de Teoria do Conhecimento, em 1929, em Praga. Do ponto de vista histórico, essa pergunta aparecia como questionamento da continuidade, na história das ciências, do período iniciado por Galileu e Descartes, aquele convencionado a chamar-se “ciência moderna”.1 1 Não é possível tratar detalhadamente desse contexto neste artigo. Dediquei-me ao tema em “Da crise na razão à razão na crise” (2019). Para Koyré, essas crises provocaram uma fissura que abria uma nova época. Ora, Koyré via nessa experiência temporal uma oportunidade de analisar as crises, as turbulências, as fissuras de outrora.

Tendo nós mesmos vivido duas ou três crises profundas da nossa maneira de pensar - “a crise dos fundamentos” e a “eclipse dos absolutos” matemáticos, a revolução relativista, a revolução quântica - tendo sofrido a destruição de nossas ideias antigas e feito o esforço de adaptação às novas ideias, nós estamos mais aptos que nossos predecessores a compreender as crises e as polêmicas de outrora. (KOYRÉ, 1973KOYRÉ Alexandre. Orientation et projets de recherches. In: Études d’histoire de la pensée scientifique. Paris: Gallimard , 1973. p. 11-15., p. 14-15)

Essa passagem indica, ao mesmo tempo, uma concepção metodológica que orientou toda a história das ciências de Koyré e o que foi seu principal objeto de estudo, as revoluções científicas, as mutações, as transformações radicais, em especial, aquela do século XVII, a qual deu fruto à “ciência moderna”. Diante das crises, Koyré se propôs a estudar a maior reviravolta da história das ciências, aquela que marcou a passagem do período da ciência aristotélica e medieval para aquele da ciência de Galileu e Descartes.

Essa proposta de estudo era acompanhada, como aponta Marlon Salomon, pela recusa da interpretação positivista, então dominante, sobre o “nascimento da ciência moderna” (SALOMON, 2010SALOMON, Marlon. Alexandre Koyré e o nascimento da ciência moderna. In: Alexandre Koyré: historiador do pensamento. Goiânia: Almeida & Clément Edições , 2010. p. 75-96., p. 77), embasada na concepção do “progresso do espírito humano que é aquela da Aufklärung, de Condorcet e de Comte” (CANGUILHEM, 1952CANGUILHEM, Georges. La connaissance de la vie. Paris: Librairie Hachette, 1952., p. 50). Tal interpretação compreendia esse momento histórico como uma etapa reveladora do “aperfeiçoamento contínuo e progressivo do espírito humano” (SALOMON, 2014SALOMON, Marlon. O problema do pensamento outro em Alexandre Koyré e Lucien Febvre . História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 7, n. 15, 2014, p. 124-147. Disponível em: https://tinyurl.com/y5epfmbw. Acesso em: 03 jan. 2022.
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, p. 130), como um capítulo de uma longa história, na qual “a anterioridade cronológica [era] uma inferioridade lógica” (CANGUILHEM, 1952CANGUILHEM, Georges. La connaissance de la vie. Paris: Librairie Hachette, 1952., p. 50). Koyré não compartilhava da premissa que estruturava essa história da evolução de uma única e mesma razão analítica. Sua história descontinuísta partia de outra concepção fundamental.

Para entrevê-la, é preciso levar em consideração a obra de Koyré em sua totalidade. De fato, Koyré é conhecido majoritariamente como historiador das ciências, escreveu obras famosas como - além dos já citados Études Galiléennes (1939) e From the closed world to the infinite universe (1957) - La révolution Astronomique (1961) e Newtonian studies (1965). Tal é o Koyré da maioria dos comentadores, dos seus leitores de maneira geral e daqueles que só o conhecem de segunda mão. No entanto, além de ter-se lançado muitas vezes à história da filosofia, Koyré, antes de voltar-se à história das ciências nos anos 1930, dedicou-se por mais de dez anos à história do misticismo especulativo alemão. Ora, é somente observando também esses curiosos estudos que compreendemos aquela concepção fundamental, a da liberdade do pensamento.

Em vários momentos de sua obra, vê-se que Koyré destacava e indicava constantemente admitir uma ideia de liberdade, manifesta na afirmação da superioridade da vontade sobre o entendimento, sobre a razão analítica, lógica. Ele rejeitava a ideia de que o homem era determinado por uma natureza, mesmo uma natureza racional, de que seus atos eram efeitos de uma racionalidade intrínseca e essencial. Koyré rechaçava a racionalização excessiva do homem, afirmada pela filosofia das Luzes. Para ele, o século XVIII era “estúpido a ponto de ser racional” (KOYRÉ, 2016KOYRÉ, Alexandre. L’âge de la raison: de Bacon à Voltaire. In: REDONDI, Pietro .(ed.) De la mystique à la science. Paris: Éditions EHESS, 2016. p. 152-160., p. 154).

O século XVIII, com sua filosofia das Luzes, é verdadeiramente muito ingênuo: pessoas que acreditam na luz, na razão, que representam o homem de maneira tão simples, que não compreendem que há no homem profundezas onde a luz não penetra e é aí o que se encontra o que há de melhor (KOYRÉ, 2016KOYRÉ, Alexandre. L’âge de la raison: de Bacon à Voltaire. In: REDONDI, Pietro .(ed.) De la mystique à la science. Paris: Éditions EHESS, 2016. p. 152-160., p. 153).

O que há de melhor e mais profundo no homem, o que está no cerne do agir humano, não é sua racionalidade lógica, seu entendimento, é sua vontade. Ele é essencialmente livre. Um ato voluntário é um ato radicalmente fora de uma lógica determinista, causal. Ele não tem outra origem a não ser ele mesmo; precisamente, não tem outra origem a não ser a própria vontade. Essa afirmação pode parecer trivial, mas não é. Suas consequências são muito profundas. Ela implica que, por mais que tal ato seja feito por um homem, sua origem não pode estar em uma natureza humana. Pois o homem que age por sua natureza, age por uma causa, é determinado, não livre. A concepção de liberdade implicada aqui não é simplesmente a ideia de que o homem não é escravo de outro, a ausência de uma coação estrangeira. É também, e principalmente, a ausência de coação interna. É a ideia de que o homem não é escravo de si mesmo, de uma natureza imposta, inclusive de uma natureza racional. Koyré passou grande parte do início de sua carreira estudando e destacando essa ideia em autores como Jacob Boehme e Descartes, afirmando-a como verdadeira, válida. Em Descartes, ele a destacou como liberdade do pensamento, como capacidade de “arrancar-se de sua natureza” (KOYRÉ, 1962KOYRÉ, Alexandre. Introduction à la lecture de Platon suivi de Entretiens sur Descartes. Paris: Gallimard, 1962., p. 221-222), nos termos já indicados, como superioridade da vontade sobre o entendimento. Em Boehme, ele a destacou em uma doutrina da liberdade, construída em oposição à doutrina da predestinação, que asseverava a capacidade do homem de se autocriar.

Foi com um olhar especial que Koyré estudou esse místico protestante. A ele, Koyré dedicou cursos na EPHE - École Pratique des Hautes Études -, artigos, resenhas e um extenso livro fruto de sua tese de doutorado de Estado, La philosophie de Jacob Boehme, publicado em 1929. Ele declarou expressamente sua predileção pela doutrina da liberdade de Boehme, particularmente pela filosofia que dela saiu pelas mãos de Schelling, leitor aplicado do místico alemão (KOYRÉ, 2017KOYRÉ, Alexandre. La philosophie de Jacob Boehme. Paris: Vrin, 2017., p. 506). A doutrina de Boehme era robusta e profunda. Elaborada na tentativa de tirar de Deus a culpa da criação do Mal e da perdição de parte de suas criaturas, ela dava a elas e, então, ao homem, o dom divino da autocriação, autoformação. Numa passagem chave de seu La philosophie de Jacob Boehme, Koyré afirma:

A ideia é curiosa e importante. A criatura colabora assim na sua própria criação. Ela é ativa no ato mesmo que a constitui no seu ser. Está aí a razão verdadeira, a razão profunda pela qual, em geral, ela pode agir. A liberdade criada, reflexo e expressão da liberdade criadora, aparece assim como um elemento constitutivo do Universo, como uma base real, fundamento último do ser e dos seres, e possessão inalienável deles (KOYRÉ, 2017KOYRÉ, Alexandre. La philosophie de Jacob Boehme. Paris: Vrin, 2017., p. 432).

Em Boehme, o homem não recebe de Deus uma natureza que determina suas ações. Ele próprio a cria. Ele não é dela escravo. O homem é vontade, como o próprio Deus, é livre para se autoformar.

Como veremos adiante, fazendo uso das noções de “vontade” e “entendimento”, Koyré destacava a mesma ideia em seus trabalhos sobre Descartes. “Deus não é uma natureza, ele não age por uma necessidade da natureza, mas por sua livre e toda poderosa vontade” (KOYRÉ, 1922KOYRÉ, Alexandre. L’idée de Dieu et les preuves de son existence chez Descartes. Paris: Ernest Leroux, 1922., p. 107). Assim também é o homem. E aqueles que não admitem isso “não lhe parecem dignos do título de homem, são animais, pois eles renunciam à mais alta e à mais perfeita potência da alma, a única que coloca uma barreira intransponível entre o homem e as bestas” (KOYRÉ, 1922KOYRÉ, Alexandre. L’idée de Dieu et les preuves de son existence chez Descartes. Paris: Ernest Leroux, 1922., p. 104). Tal potência é a vontade, que faz do homem essencialmente livre para constituir-se.2 2 Seria possível dispensar muitas páginas a essa concepção tão presente na obra de Koyré. De fato, dediquei-me a ela em toda primeira metade de minha tese de doutorado, “A liberdade do pensamento: estudo sobre o fundo místico da história de Alexandre Koyré” (2021), analisando-a em várias de suas obras, algumas inéditas. Infelizmente, por falta de espaço, não posso delongar-me mais aqui.

A liberdade em ato: a história da revolução científica de Koyré

Koyré levou uma versão laicizada dessa ideia de liberdade para o campo de estudos pelo qual ele se tornou conhecido: a história da revolução científica do século XVII. Ela permaneceu como tônus3 3 Utilizo a noção de tônus muscular (estado de tensão dos músculos, dinâmico, que prepara para o movimento) no mesmo sentido que Jean-François Braunstein a emprega ao falar da existência de uma unidade de “inspiração” - isto é, não de tema ou de objeto - na obra de Georges Canguilhem (ALMEIDA; CAMOLEZI, 2016, p. 170-171). Essa noção é particularmente conveniente para explicar a obra de Koyré. A ideia da liberdade do pensamento, como tônus de sua obra historiográfica, é a condição de possibilidade da mudança, do histórico, do acontecimento, do movimento. de seu trabalho, como condição da musculatura de sua história, pronta continuamente a indicar o movimento, a mudança. De outro modo, ela foi o fundamento do célebre descontinuísmo de sua história das ciências. A revolução científica de Koyré, que aponta uma quebra na continuidade histórica do desenrolar do pensamento científico e filosófico quinhentista e seiscentista, a mudança de um período, é o momento de autoformação do pensamento, de recriação própria. Isso porque, da mesma maneira que são Deus, os anjos e os homens, em Jacob Boehme, em Koyré, o pensamento humano é capaz de se autoformar, dito de outro modo, ele é livre. Ele não é limitado por uma natureza racional que determinaria suas atitudes, nem determinado externamente. Em sua essência, está a liberdade. A revolução científica koyreana é, portanto, o momento de manifestação dessa liberdade do pensamento.

Sem dúvida, os textos mais claros de Koyré nos quais se vê a aplicação dessa concepção à história das ciências são seus textos sobre a revolução espiritual que suporta a revolução científica, cujo principal protagonista é René Descartes. Para Koyré, o Discours de la Méthode era “um livro único” (KOYRÉ, 2016KOYRÉ, Alexandre. L’âge de la raison: de Bacon à Voltaire. In: REDONDI, Pietro .(ed.) De la mystique à la science. Paris: Éditions EHESS, 2016. p. 152-160., p. 121), ele afirma em 1937, mas também em um de seus cursos na EPHE, intitulado L’âge de la raison, de 1944. Porque “é a primeira vez na história da filosofia que um filósofo nos conta a história de sua vida espiritual e nos propõe tirar uma lição” (KOYRÉ, 2016KOYRÉ, Alexandre. L’âge de la raison: de Bacon à Voltaire. In: REDONDI, Pietro .(ed.) De la mystique à la science. Paris: Éditions EHESS, 2016. p. 152-160., p. 121). “Descartes traça a história de sua conversão em direção ao espírito”. Em um contexto de ceticismo e relativismo, ele acreditava ser necessário “tomar posse da nossa própria razão” (KOYRÉ, 2016KOYRÉ, Alexandre. L’âge de la raison: de Bacon à Voltaire. In: REDONDI, Pietro .(ed.) De la mystique à la science. Paris: Éditions EHESS, 2016. p. 152-160., p. 123). Em meio à dúvida e à incerteza, Descartes resolve, numa atitude radical, duvidar de tudo, tornando a própria dúvida, não como estado, mas como método, isto é, dominando-a. Mas não está aí a revolução, segundo Koyré. Afinal, ele diz:

Há algo que precede essa dúvida: vamos decidir evitar todo erro.

O que é o erro? É uma crença em algo que não é admissível como verdadeiro, em algo falso. Nós recusamos nossa crença. Isso é um ato de liberdade, pelo qual decidimos suspender nossa crença, suspender nosso julgamento, dizer não a todos os mecanismos, a todas as crenças da natureza. Nós nos fazemos independentes da natureza, nós nos afirmamos em nossa autocracia espiritual.

É livremente que decidimos não crer em nada e aplicar a prova da dúvida (KOYRÉ, 2016KOYRÉ, Alexandre. L’âge de la raison: de Bacon à Voltaire. In: REDONDI, Pietro .(ed.) De la mystique à la science. Paris: Éditions EHESS, 2016. p. 152-160., p. 123).

A revolução espiritual, em Descartes, se dá graças a um ato de liberdade. A lição cartesiana é essa. É a da “autocracia” do pensamento humano. Ele é livre para recusar a crer naquilo que lhe foi ensinado. Para Koyré, certamente trata-se de uma lição válida. A autocracia do pensamento, o poder ilimitado de se refazer, sua soberania, é algo “provado” pelo filósofo francês, notório em sua história espiritual. Koyré toma partido. E, ao fazê-lo, ele nos dá a chave que liga seus trabalhos de história do misticismo especulativo alemão à história das ciências. Koyré leva aquela filosofia da liberdade à história das ciências pela ideia de liberdade do pensamento. Descartes, para ele, “prova” algo que já existia (KOYRÉ, 1962KOYRÉ, Alexandre. Introduction à la lecture de Platon suivi de Entretiens sur Descartes. Paris: Gallimard, 1962., p. 222). Pois, o pensamento humano, para Koyré, não foi livre apenas a partir do século XVII. O que difere o século XVII é sobretudo a conscientização e a afirmação inaudita de sua autocracia.

Porque, para o próprio Koyré, é por ser livre que Descartes negou os caminhos que lhe foram ensinados, o que aprendeu pela tradição, e tomou outra rota. É por isso que “a filosofia de Descartes não demonstra a liberdade da vontade humana. Ela a pressupõe e a prova por sua própria existência” (KOYRÉ, 1962KOYRÉ, Alexandre. Introduction à la lecture de Platon suivi de Entretiens sur Descartes. Paris: Gallimard, 1962., p. 222). A liberdade do pensamento é o que torna possível a recusa, a mudança. Ora, se o pensamento científico e filosófico mudou ao longo da história foi justamente por ser livre; se ele não permaneceu estático, imóvel, foi precisamente por possuir como tônus a liberdade. Mas como essa concepção aparece na história das ciências de Koyré? Onde ela se situa?

Como Chartier sugere, naquela citação inicial, a revolução científica koyreana não é um fenômeno histórico que acontece tout à coup. A história de Koyré não é a história de um personagem só, de um grande gênio, um iluminado pela razão que do dia para noite construiu sozinho a ciência moderna. É a história de um conjunto de personagens - Copérnico, Giordano Bruno, Kepler, Galileu, Descartes etc. - que dialogam entre si, se criticam, retomam ou rejeitam concepções e teorias de seus interlocutores vivos ou históricos. Onde está a concepção da liberdade do pensamento humano nessa conjuntura? Está na maneira pela qual Koyré articula os personagens de sua história uns com os outros e com seus múltiplos contextos, com a tradição. Eles são ativos, estão sempre a tomar atitudes livres, sem causa, atitudes historicamente significativas, “ousadas”, “admiráveis” (KOYRÉ, 1966KOYRÉ, Alexandre. Études Galiléennes. Paris: Hermann, 1966., p. 181; KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 28), atitudes que provocam uma reconfiguração do seu próprio pensamento. Dessa maneira, o ponto de contato que une os protagonistas da “revolução” não é uma relação necessária. Copérnico não é uma peça que foi movida por uma necessidade interior ou exterior, isto é, que foi movida passivamente, cujo movimento iniciou um processo necessário, um efeito dominó. Cada peça (autor) da história de Koyré tem, com todo sentido do termo, “vontade própria”, pode se mover ou não, elas não estão submetidas a uma natureza interna, ao social ou a um télos. Elas não são determinadas.

Como Koyré destaca em seu artigo Copérnico (2015KOYRÉ, Alexandre. Copérnico. Tradução de Marlon Salomon e Raquel M. G. Campos. In: CONDÉ, Mauro L. L.; SALOMON, Marlon. Alexandre Koyré: história e filosofia das ciências. Belo Horizonte: Fino traço, 2015. p. 23-41.), publicado em Alexandre Koyré: história e filosofia das ciências, e em seus Études Galiléennes, Copérnico não fez mais observações que seus predecessores, seu heliocentrismo “não esta[va] mais de acordo com os fenômenos do que o [sistema astronômico] de Ptolomeu, a quem ele teve a pretensão de substituir” (KOYRÉ, 2015KOYRÉ, Alexandre. Copérnico. Tradução de Marlon Salomon e Raquel M. G. Campos. In: CONDÉ, Mauro L. L.; SALOMON, Marlon. Alexandre Koyré: história e filosofia das ciências. Belo Horizonte: Fino traço, 2015. p. 23-41., p. 28). Ele não conseguiu dar uma resposta consistente ao argumento mais forte dos aristotélicos sobre a queda dos graves (KOYRÉ, 1966KOYRÉ, Alexandre. Études Galiléennes. Paris: Hermann, 1966., p. 170). Se ele construiu seu sistema astronômico transgredindo os fundamentos da física e da astronomia aristotélica, como a separação de um mundo sub e supralunar, considerada como evidente e muito mais racional para seu período, não foi, certamente, por fazer mais uso da razão que seus contemporâneos vivos e seus predecessores, como Aristóteles e Ptolomeu. Foi por sua conta e risco, por sua vontade própria, pois pela razão, pelo entendimento, Copérnico seria aristotélico. Ele transgrediu “um triplo ensinamento: científico, filosófico, teológico, [...] uma tripla tradição, uma tripla autoridade: de cálculos, de raciocínios, de revelação” (KOYRÉ, 2015KOYRÉ, Alexandre. Copérnico. Tradução de Marlon Salomon e Raquel M. G. Campos. In: CONDÉ, Mauro L. L.; SALOMON, Marlon. Alexandre Koyré: história e filosofia das ciências. Belo Horizonte: Fino traço, 2015. p. 23-41., p. 24). Em um “esforço liberatório”, com uma “inverossímil audácia”, ele “arrancou a Terra de seus fundamentos e a lançou no céu” (KOYRÉ, 2015KOYRÉ, Alexandre. Copérnico. Tradução de Marlon Salomon e Raquel M. G. Campos. In: CONDÉ, Mauro L. L.; SALOMON, Marlon. Alexandre Koyré: história e filosofia das ciências. Belo Horizonte: Fino traço, 2015. p. 23-41., p. 24), destruindo, em seu pensamento, a ideia de um mundo feito e centrado no homem e a ideia da separação do mundo sublunar e os céus, colocando, em seu lugar, a ideia de um Universo que não gira mais para nós. Em um “esforço liberatório”, Copérnico refez, recriou seu próprio pensamento, provocou uma “revolução”.

É dessa mesma maneira que Koyré nos apresenta Giordano Bruno. Aqui, novamente, ele sublinha não sua racionalidade ou sua subserviência a seus contemporâneos ou a Copérnico, mas “a audácia e o radicalismo do pensamento de Bruno, que opera uma transformação - verdadeira revolução - da imagem tradicional do mundo e da realidade física” (KOYRÉ, 1966KOYRÉ, Alexandre. Études Galiléennes. Paris: Hermann, 1966., p. 181), Copérnico acreditava ainda em um Cosmo fechado, como Aristóteles. Bruno “recusou-se” a essa crença. Em uma atitude livre, sem causa, não determinada, ele foi “o primeiro a proclamar a infinidade do espaço e a opor, ao Cosmo finito da tradição, seu Universo infinito, e [foi o primeiro] a levar ao seu limite lógico a assimilação, timidamente esboçada por Copérnico, da terra e dos céus” (KOYRÉ, 1966KOYRÉ, Alexandre. Études Galiléennes. Paris: Hermann, 1966., p. 181). Bruno recusa a tradição e Copérnico. Ele não é passivo, reproduzindo uma ou outra parte do debate, ainda que uma delas, como dissemos, a aristotélica, fosse muito mais racional, explicando os fenômenos físicos e astronômicos. “Os corpos caem [...]; os planetas descrevem círculos em torno do sol. Aristóteles o explica; Bruno, no fundo, não sabe explicar” (KOYRÉ, 1966KOYRÉ, Alexandre. Études Galiléennes. Paris: Hermann, 1966., p. 181). Mais uma vez, Bruno não segue o que Koyré chamava, em termos cartesianos, de “entendimento”, faculdade do espírito cujo papel é o “de registrar o que é, de deixar os objetos falarem de alguma maneira sua própria língua, de servir como médium transparente” (KOYRÉ, 1922KOYRÉ, Alexandre. L’idée de Dieu et les preuves de son existence chez Descartes. Paris: Ernest Leroux, 1922., p. 29), cujo papel é analisar o que lhe é ensinado, categorizar. Quem decidiu - não nos esquecemos, trata-se, em última instância, de uma decisão da vontade - seguir seu entendimento foi Tycho Brahe, autor cujos argumentos não apresentavam nenhuma novidade senão aquela de modernizar as objeções aristotélicas ao movimento da Terra (KOYRÉ, 1966KOYRÉ, Alexandre. Études Galiléennes. Paris: Hermann, 1966., p. 182). Mas “não escarneçamos de Tycho. No fundo, quando ele nos diz que o movimento da terra é impossível admitir até que alguém, por argumentos novos e mais fortes, nos mostre claramente [...], ele tem perfeitamente razão” (KOYRÉ, 1966KOYRÉ, Alexandre. Études Galiléennes. Paris: Hermann, 1966., p. 186). O pensamento de Bruno ou de Galileu é “insólito” (KOYRÉ, 1966KOYRÉ, Alexandre. Études Galiléennes. Paris: Hermann, 1966., p. 186).

“Do ponto de vista estritamente científico” (KOYRÉ, 1966KOYRÉ, Alexandre. Études Galiléennes. Paris: Hermann, 1966., p. 187), Koyré também não apresenta Kepler como personagem passivo na história da revolução científica. Ele “é sem dúvida o primeiro espírito de seu tempo” (KOYRÉ, 1966KOYRÉ, Alexandre. Études Galiléennes. Paris: Hermann, 1966., p. 187). Koyré destaca “uma ousadia de pensamento sem igual, ousadia que lhe permitiu libertar a astronomia, e assim, a física e a mecânica, da assombração da circularidade” (KOYRÉ, 1966KOYRÉ, Alexandre. Études Galiléennes. Paris: Hermann, 1966., p. 187). Ainda que “filosoficamente ele [esteja] mais próximo de Aristóteles do que de Galileu e Descartes”, ainda que “filosoficamente ele [seja] um homem da Idade Média” (KOYRÉ, 1966KOYRÉ, Alexandre. Études Galiléennes. Paris: Hermann, 1966., p. 187) e, nesse sentido, não tenha se lançado ao movimento, Kepler deu passos que nem Galileu ousou dar. A tradição aristotélica - e Galileu, seu contemporâneo - era, como Koyré diz, “assombrada” pela forma circular. Ao recusá-la, substituindo-a pela forma elíptica, Kepler apresentava uma atitude nova, para Koyré, uma ação do pensamento sem precedentes.

Quando chegamos em Galileu, um dos principais protagonistas da revolução científica, em Koyré, a ideia de autoformação, de liberdade do pensamento, é ainda mais clara, e muito próxima da maneira como descreve o Descartes místico. O Diálogo sobre os dois máximos sistemas de mundo é, como o Discurso do método, “um livro de história: a história do espírito de Galileu” (KOYRÉ, 1966KOYRÉ, Alexandre. Études Galiléennes. Paris: Hermann, 1966., p. 212). Como Descartes, Galileu recriou seu próprio pensamento, dispensando para isso um “esforço titânico” que lhe permitiu “passar, ele próprio, da física de Aristóteles àquela do impetus e, de lá, àquela dos Discursos” (KOYRÉ, 1966KOYRÉ, Alexandre. Études Galiléennes. Paris: Hermann, 1966., p. 215). Essa autoformação, essa recriação, Galileu “nos faz refazer, de algum modo, com ele próprio a rota que, ele mesmo, percorreu; daí, em uma distância de algumas páginas, raciocínios pertencentes a etapas e níveis bem diferentes de pensamento” (KOYRÉ, 1966KOYRÉ, Alexandre. Études Galiléennes. Paris: Hermann, 1966., p. 215).

Daí o Diálogo ser também uma “obra pedagógica” (KOYRÉ, 1966KOYRÉ, Alexandre. Études Galiléennes. Paris: Hermann, 1966., p. 213).

Pois não se trata somente de convencer, de persuadir e de provar: trata-se também, e talvez sobretudo, de levar, pouco a pouco, o leitor honnête homme a poder ser persuadido e convencido; a poder compreender a demonstração e receber a prova. E por isso, um duplo trabalho de destruição e de educação se acha necessário: destruição dos preconceitos e hábitos mentais tradicionais e do senso comum; criação, em seu lugar, de hábitos novos, de uma aptidão nova ao raciocínio (KOYRÉ, 1966KOYRÉ, Alexandre. Études Galiléennes. Paris: Hermann, 1966., p. 213).

Para Koyré, Galileu não pode apenas convencer. Porque não é ensinando seus contemporâneos a utilizar seu entendimento, não é apelando a uma natureza racional, que Galileu pode persuadi-los da matematização do físico. Antes, é preciso “criar”, algo que Galileu não pode fazer por eles, daí ele contar a história do seu espírito. É preciso, a cada um, fazer uso da sua liberdade, da sua vontade, da autocracia do pensamento, recusar-se assim à crença, ao que lhe foi ensinado, “não confiar na autoridade, na tradição e no senso comum” (KOYRÉ, 1966KOYRÉ, Alexandre. Études Galiléennes. Paris: Hermann, 1966., p. 213).

Para isso, como outrora destacamos, segundo Koyré, Galileu apresenta três figuras que se situam em diferentes processos de autoformação: Salviati, aquele que recriou seu pensamento, se reformou; Sagredo, aquele que está no meio do processo, pois deu o primeiro passo, o ato livre de se recusar à crença; Simplício, aquele que não fez uso da sua liberdade, ou melhor, o fez decidindo seguir seu entendimento.

Salviati, o porta-voz de Galileu, representa a inteligência matemática da ciência nova; Sagredo, a bona mens, o espírito já liberto dos preconceitos da tradição aristotélica e das ilusões do senso comum, o espírito, por consequência capaz de apreender - e mesmo, tendo-o apreendido, desenvolver as consequências - a verdade nova do raciocínio galilaico; Simplício, o senso comum, imbuído de preconceitos da filosofia escolástica, que crê na autoridade de Aristóteles e da ciência oficial, e se debate penosamente sob o peso da tradição (KOYRÉ, 1966KOYRÉ, Alexandre. Études Galiléennes. Paris: Hermann, 1966., p. 216).

Apesar da distância entre Simplício e Salviati, importa destacar que, potencialmente, o primeiro pode transformar-se no segundo. Lembremo-nos, ao longo da sua vida, Galileu foi os dois. Pois a liberdade do pensamento que permite sua autoformação, a recriação de seus fundamentos, é sua essência. Como em Boehme e Descartes, não se trata de uma propriedade adicionada ou adquirida. Simplício crê na tradição aristotélica, crê na ciência oficial. Ora, para Koyré - vemos em sua dissertação de 1922KOYRÉ, Alexandre. L’idée de Dieu et les preuves de son existence chez Descartes. Paris: Ernest Leroux, 1922., em seu Le mysticisme chez Maine de Biran, provavelmente da década de 1930, em Entretiens sur Descartes, de 1937, em seu curso na École Pratique des Hautes Études (EPHE), de 1944 - a crença é um ato da vontade (KOYRÉ, 1922KOYRÉ, Alexandre. L’idée de Dieu et les preuves de son existence chez Descartes. Paris: Ernest Leroux, 1922., p. 79). A ação de crer ou não crer não é uma ação do entendimento. É da vontade, portanto, um ato livre. Simplício pode transformar-se em Salviati porque “o homem é livre [...] ele pode dizer não à tendência natural que o leva a crer no que vê e ouve; [...] pode recusar-se a seguir a impressão poderosa do sensível; arrancar-se do domínio do seu corpo, dos seus hábitos, da sua natureza, numa palavra” (KOYRÉ, 1963KOYRÉ, Alexandre. Considerações sobre Descartes. Tradução: Hélder Godinho. Lisboa: Editoral Presença, 1963., p. 84). Simplício pode dizer não à crença, pode criar novos hábitos, pode modificar sua própria natureza. Ele pode se autoformar, transformando-se em Salviati. Como indiquei, a concepção da liberdade do pensamento é o tônus da história de Alexandre Koyré. A mente de seus personagens está continuamente num estado dinâmico, preparada para o movimento.

A liberdade em ato: From the closed world to the infinite universe

Ao desenvolver seu trabalho sobre a revolução científica do século XVII, em From the closed world to the infinite universe, retomado por Chartier naquela passagem, Koyré não deixa de lado tal concepção. Ao tratar de outro aspecto dessa revolução, relativo a suas implicações, isto é, “o abandono, pelo pensamento científico, de todas as considerações baseadas em conceitos de valor, como perfeição, harmonia, significado e objetivo, e, finalmente, a completa desvalorização do ser, o divórcio do mundo do valor e do mundo dos fatos” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 14), Koyré mantém o tônus. Mais uma vez, ele aparece na articulação dos personagens de sua história, uns com os outros e com seu contexto formado pela concepção de mundo aristotélico-medieval, representado sobretudo na ideia de um Cosmo ordenado e finito (KOYRÉ, 1963KOYRÉ, Alexandre. Considerações sobre Descartes. Tradução: Hélder Godinho. Lisboa: Editoral Presença, 1963., p. 66-67). Mais uma vez, o que guia sua obra historiográfica é a noção de liberdade, daí ele sublinhar o caráter não passivo dos protagonistas de sua narrativa, sua prontidão ao movimento, a recusar a crença, os ensinamentos que lhes chegavam, mesmo aqueles de seus interlocutores contemporâneos. Mais uma vez, Koyré tenta colocar em evidência atitudes livres, atos da vontade, de cada autor.

Logo nas primeiras páginas de seu livro, ele nos mostra isso ao fornecer sua própria definição de um termo cujo sentido nos indicaria certa passividade de seus personagens. Trata-se do termo “influência”. Enquanto André Lalande, em seu dicionário revisado pelos membros e correspondentes da Société Française de Philosophie, o Vocabulaire technique et critique de la philosophie, definia “influência” como “ação de uma circunstância, de uma coisa ou uma pessoa sobre uma outra” (LALANDE, 2018LALANDE, André. Vocabulaire technique et critique de la philosophie. 10ª ed. Paris: PUF, 2018., p. 513), como “autoridade de prestígio sobre as ideias ou sobre a vontade de outrem” (LALANDE, 2018LALANDE, André. Vocabulaire technique et critique de la philosophie. 10ª ed. Paris: PUF, 2018., p. 513), ou seja, como uma relação unilateral, Koyré assim a definia:

Não podemos esquecer, ademais, de que a “influência” não é uma relação simples; pelo contrário, é bilateral e muito complexa. Não somos influenciados por tudo aquilo que lemos ou aprendemos. Em certo sentido, talvez o mais profundo, somos nós mesmos que escolhemos as influências a que nos submetemos; nossos ancestrais intelectuais não são de modo algum dado a nós; nós é que os escolhemos, livremente. Pelo menos, em grande parte (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 17)

Notemos que não se trata de uma concepção histo/ricamente definida. Não foi a partir de Descartes, Galileu ou Newton que a relação de influência se tornou bilateral. Koyré a situa logo no primeiro capítulo de sua obra, no qual discorre sobre Nicolau de Cusa, “o último grande filósofo da moribunda Idade Média” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 18). Como se vê, é uma concepção de Koyré, norteadora da maneira pela qual ele articula seus personagens, sempre ativos, mesmo quando retomam outros autores. É por isso que Tycho Brahe, ainda que seguindo seu entendimento, seguindo Aristóteles, agiu por escolha, por sua vontade. Seu aristotelismo não era necessário. Para Koyré, é a vontade que dá seu assentimento a uma ideia do entendimento, mesmo uma ideia clara e distinta, donde sua superioridade. A história de Koyré não suprime a ucronia.

A noção koyreana de influência está intimamente interligada à concepção da liberdade do pensamento, a qual, mesmo ao tratar de outro aspecto da revolução científica, continua como fundamento da história de Alexandre Koyré. Seus protagonistas decidem, escolhem seus próprios ancestrais intelectuais, escolhem os elementos, as peças que formam seu próprio pensamento. Eles se constroem, dito de outro modo, se criam.

Dessa forma, Koyré inicia seu livro afirmando ser “impossível reduzir a história da infinitização do universo à redescoberta da concepção do mundo dos atomistas gregos” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 17), ainda que seja correto dizer que “a concepção de infinitude do universo, como tudo ou quase tudo mais, origina-se, com os gregos” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 17). Não foram eles que foram retomados nos séculos XVI e XVII. Pois os autores desse período, embora os conhecessem, escolheram ignorar sua ideia de infinitude. Foi com base nessa escolha - que levou os cientistas e filósofos dessa época a tomar o caminho mais difícil - que Koyré escreveu a história do processo que levou do mundo fechado ao universo infinito, pois, do contrário, tudo seria reenviado à Grécia antiga. É fundamentando-se naquela ideia de liberdade que Koyré narra, então, como “a bolha terrestre cresceu e inchou” até “rebentar e fundir-se no espaço que a circundava” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 8).

Isso se vê, como apontamos há pouco, no início de sua narrativa, na descrição de seu primeiro personagem. Diógenes e Laércio, partidários da infinitude do universo, não exerceram uma ação sobre o pensamento de Nicolau de Cusa, em sua rejeição da concepção cosmológica medieval (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 18). Sua crítica à base metafísica da cosmologia aristotélica foi feita a partir de considerações teológicas, seu universo era uma contração de Deus (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 20). No mesmo tom de seus trabalhos anteriores, Koyré afirma que “não podemos deixar de admirar a ousadia e a profundidade das concepções cosmológicas de Nicolau de Cusa” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 28).

Depois de Cusa, vê-se praticamente os mesmos protagonistas de outrora, Copérnico, Bruno, Kepler, Galileu e Descartes, bem como o mesmo tônus, perceptível sob diferentes aspectos. Vejamos o modo como Koyré descreve a relação dos autores com seus interlocutores e seu contexto.

Paligenius e Copérnico são praticamente contemporâneos. Na verdade, Zodiacus vitae e De revolutionibus orbium coelestium devem ter sido escritos mais ou menos na mesma época. No entanto, nada ou quase nada têm em comum. É como se séculos os separassem.

Aliás, na verdade as duas obras estão separadas por séculos, por todos aqueles séculos durante os quais a cosmologia aristotélica e a astronomia ptolomaica dominaram o pensamento ocidental. Copérnico, naturalmente, utiliza de modo pleno as técnicas matemáticas elaboradas por Ptolomeu - uma das maiores realizações da mente humana - mas vai buscar inspiração antes dele, antes de Aristóteles, remonta à ideia áurea de Pitágoras e Platão (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 37).

Como é possível dois contemporâneos serem separados por séculos? É possível somente levando em consideração a ideia de liberdade koyreana, mas também, outra concepção fundamental da história escrita por Koyré latente nessa passagem: a de um tempo histórico diluído em diversas linhas de temporalidade. Copérnico e Paligenius estão separados por séculos, mesmo sendo praticamente contemporâneos, porque não há um tempo único, aquele da cronologia, no qual eles estariam engessados. Ao escolherem diferentes ancestrais intelectuais, um escolheu Aristóteles, outro, Pitágoras e Platão, ao formarem seu pensamento com peças distintas, eles se integraram a diferentes histórias com diferentes temporalidades. Paligenius ligou-se à história da cosmologia aristotélica-ptolomaica. Copérnico, por um lado, ligou-se à história do platonismo e neoplatonismo medieval. Por outro, ao levar a metafísica da luz, presente durante toda a Idade Média no estudo da ótica geométrica, à astronomia, abriu uma nova linha temporal, iniciou uma nova história. Retornarei a essa questão no último tópico deste artigo.

Não é preciso descrever novamente aqueles mesmos personagens conhecidos. Koyré continua a destacar atitudes livres; a “ousadia” ou “audácia” dos autores em reformar seu pensamento. Passemos para outro protagonista da revolução científica e de como ele, escolhendo um ancestral intelectual muito curioso, construiu, formou, criou seu próprio pensamento: Newton.

Newton escolheu ser influenciado por Henry More. “Pode parecer estranho aproximarmos Henry More de Isaac Newton...” Nos parágrafos seguintes, Koyré afirma: “A física ou, mais exatamente, a filosofia natural de Newton não pode ser dissociada dos conceitos de tempo absoluto e espaço absoluto, os mesmos conceitos pelos quais Henry More travou uma batalha prolongada e resoluta contra Descartes” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 153).

A concepção de espaço de More parece uma “investigação aberrante, bizarra e curiosa, a ‘fantasia’ de um místico neoplatônico perdido no mundo da nova ciência.” No entanto, “em seus aspectos mais fundamentais, ela é compartilhada por vários filósofos de seu tempo, precisamente por aqueles que se identificavam com a nova concepção científica do mundo” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 149). As ideias de More deram à nova ciência “alguns dos elementos mais importantes do quadro metafísico que lhe assegurou o desenvolvimento” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 123).

More, “um dos primeiros partidários de Descartes na Inglaterra” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 110), acreditava que o filósofo francês havia estabelecido a infinidade do mundo e só não a tinha declarado expressis verbis, considerando-o não como infinito, mas indefinido, no intuito de aplacar os teólogos, reservando o atributo da infinitude apenas para Deus (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 109). Entretanto, embora admitisse as concepções cartesianas nesse sentido, More não admitiu suas ideias por completo e dirigiu-lhe várias objeções em uma série de correspondências, em 1648. Não aceitou a identificação cartesiana entre matéria e extensão ou espaço. Consequentemente, também não admitiu a oposição entre espírito e extensão (em Descartes, o espírito é aquilo que não tem extensão, diferentemente da matéria, que é pura e simples extensão). Concluindo, More não foi passivo diante de Descartes, não admitiu “a geometrização completa do ser.” Suas objeções foram no sentido de evitá-la.

More defende, contra Descartes, várias modificações de suas concepções. Para ele, a matéria deveria ser, sim, considerada extensa, mas deveria ser definida “pela capacidade dos corpos de estarem em contato mútuo, e pela impenetrabilidade” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 111). Por outro lado, o espírito (Deus, alma, os anjos) deveria ser também considerado extenso, mas quanto à impenetrabilidade, deveria ser tido como oposto à matéria. Contra a geometrização do ser, contra a redução do ser à extensão ou ao espaço, More queria

manter a antiga distinção entre o espaço e as coisas que estão no espaço; que se movem no espaço e não somente umas em relação às outras; que ocupam espaço em virtude de uma qualidade ou força especial e própria - a impenetrabilidade -, pela qual resistem umas às outras, de seus respectivos “lugares” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 113).

More não concebia o espaço como um vazio infinito, à la Lucrécio, nem como algo cheio de éter, como o espaço infinito de Bruno. Ele acreditava em sua infinitude, mas de nenhuma dessas maneiras. O espaço de More “é cheio de Deus, e num certo sentido é o Próprio Deus” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 113). Daí que, para ele, o espaço seja infinito, porque, se Deus está presente no mundo, em toda parte, e se ele é certamente infinito em extensão - lembremos que o espírito é extenso, para More -, dever-se-ia afirmar que o espaço, entendido como extensão de Deus, também era infinito (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 119). Sua concepção é muito diferente da cartesiana. Para o filósofo francês, Deus

[...] é um espírito puro, um espírito infinito, cuja própria infinitude tem uma natureza única e incomparável, não quantitativa e não dimensional, infinitude da qual a extensão espacial não é nem imagem nem símbolo. O mundo, portanto, não deve ser chamado de infinito, se bem que, naturalmente, não o devamos fechar dentro de limites (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 120).

Descartes afirmou tudo isso a More. Seu cuidado em atribuir o caráter de infinitude apenas a Deus é muito compreensível. “A infinitude, com efeito, sempre foi a característica, ou o atributo de Deus, principalmente a partir de Duns Scotus” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 122). Koyré precisa: “assim - e isso é particularmente verdadeiro para Descartes, cujo Deus existe em virtude da infinita ‘superabundância de sua essência’ que lhe permite ser sua própria causa (causa sui) e dar sua própria existência - a infinitude implica o ser, e até o ser necessário.” Segue-se daí que “não pode ser atribuída à criatura” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 122). No entanto, ele não o convenceu. More “persistiu, assim, em acreditar - ‘com todos os plantonistas da Antiguidade’ - que todas as substâncias, os anjos, as almas e Deus têm extensão, e que o mundo, no sentido mais literal da palavra, está em Deus, tanto quanto Deus está no mundo” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 121). De todo modo, é certo que “Henry More conseguiu apreender o princípio fundamental da nova ontologia, a infinitização do espaço, que ele afirmou com energia inflexível e intrépida” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 124).

Certamente ele o fez contrapondo-se, como vimos, a certas concepções de Descartes. Para ele, “a matéria é móvel no espaço, e, em razão de sua impenetrabilidade, ocupa espaço: o espaço não é móvel e não é afetado pela presença, ou pela ausência, de matéria nele. Assim, é impensável matéria sem espaço” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 124), o contrário, no entanto, é perfeitamente concebível. Outra concepção muito diferente daquela cartesiana, como vimos há pouco, é a de espírito. Dez anos depois das cartas a Descartes, More a define de modo mais preciso, “atribuindo propriedades opostas ou contrárias às de um corpo: penetrabilidade, indivisibilidade e a faculdade de se contrair ou dilatar, ou seja, estender-se, sem solução de continuidade, a um espaço menor ou maior” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 126). Ora, o conceito de More é “calcado obviamente sobre a ideia de um fantasma” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 127).4 4 Mas “não nos esqueçamos de que a ideia de uma entidade extensa e imaterial não era de modo algum estranha ou mesmo incomum. Muito pelo contrário: tais entidades estavam representadas abundantemente, tanto na vida diária desses homens quanto em suas experiências científicas” (KOYRÉ, 1986, p. 128). Koyré dá, como exemplos, a ideia de luz, de gravidade e de éter.

Ao precisar sua noção de espírito, More foi levado a separar o espaço ou a pura extensão imaterial e o “espírito da natureza que o penetra e enche, que age sobre a matéria” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 129). Por esse espírito, More pretendia explicar alguns fenômenos que não podiam ser explicados “por forças puramente mecânicas”, como o fenômeno da gravidade. Por ele também se explica a “organização teleológica que se manifesta não só nas plantas, nos animais etc., mas até mesmo na própria ordem de nosso sistema solar. Tudo isso é obra do espírito da natureza, que age como instrumento, inconsciente, da vontade divina” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 131). Tal espírito da natureza “se estende em seu espaço infinito”. Quanto à noção própria desse espaço, More o considera como “um ‘espírito’ de uma espécie muito especial e única, e tende a identificá-lo com a própria extensão divina” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 131). Ele chegará a apresentá-lo, em 1672, “como o melhor e mais evidente exemplo de realidade não material - e, portanto, espiritual” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 134).

A contraposição de More a Descartes, em From the closed world to the infinite universe, é fruto das implicações da destruição do Cosmo e da geometrização do espaço provocada em grande parte pelo filósofo francês. Vemos como a revolução científica em Koyré não é a narrativa de um encadeamento necessário, um efeito dominó. Na esteira do que escreve em 1937, em Considerações sobre Descartes, sobre o que significava o Cosmo, que fazia “dizer ao Salmista que o céu e a terra clamam a glória do Eterno e louvam o trabalho das suas mãos” (KOYRÉ, 1963KOYRÉ, Alexandre. Considerações sobre Descartes. Tradução: Hélder Godinho. Lisboa: Editoral Presença, 1963., p. 66), e das implicações de sua destruição, Koyré sublinha que More descobriu que

[...] ao negar o espaço vazio como a extensão espiritual Descartes praticamente excluiu os espíritos, as almas e até Deus de seu mundo; ele simplesmente não lhes deixa lugar nesse mundo. À pergunta “onde?”, a mais fundamental que pode ser levantada com relação a todos e quaisquer seres reais - almas, espíritos, Deus - e à qual Henry More acredita poder dar respostas definidas (aqui, alhures ou - para Deus - em toda parte), Descartes é obrigado por seus princípios a responder: em lugar nenhum nullibi (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 134).

É por isso que More defende a realidade do espaço, um espaço absoluto. “É alguma coisa, e alguma coisa que existe, no pleno sentido do verbo. Mais uma vez, não é uma ficção, ou produto da imaginação, mas uma entidade perfeitamente real” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 140). Nisso More se sustenta nos atomistas gregos. Pois, ele tenta defender, não há atributo real - e a extensão certamente o é - sem substância real. “Atributos não vagueiam sós, livres e soltos pelo mundo. Não podem existir sem substrato, como o sorriso do gato de Cheshire, pois isso significaria serem atributos de nada” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 141). Portanto “o infinito, entidade extensa que tudo abrange e tudo penetra, é com efeito uma substância. Mas não é matéria. É um Espírito; não um espírito, mas o Espírito, isto é, Deus” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 142).

More tenta sustentar tal afirmação apontando seus atributos. Segundo ele, afirma Koyré, “o espaço absoluto é infinito, imóvel homogêneo, indivisível e único” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 144). É também eterno simples e uno, completo, independente - inclusive da nossa imaginação - e existente em si mesmo (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 145).5 5 “Não podemos ‘desimaginar o espaço ou afugentá-lo do pensamento. Podemos imaginar ou pensar que qualquer objeto desapareça do espaço; não podemos imaginar o desaparecimento do próprio espaço” (KOYRÉ, 1986, p. 145). Algumas dessas propriedades são as que “Kant haveria de redescobrir cem anos depois. Contudo, tal como Descartes, Kant não inclui entre elas a indivisibilidade, o que o impediu de relacionar o espaço a Deus e o obrigou a colocá-lo em nós mesmos” (KOYRÉ, 1986, p. 144). O espaço também é infinito, então onipresente, tudo penetra, é um ser em ato. “A lista de ‘atributos’ comuns a Deus e ao espaço, e enumerados por More, é bastante impressionante, e somos obrigados a admitir que convêm perfeitamente. Afinal, isso não surpreende: todos eles são atributos formais do absoluto” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 146).

Ora, Newton formou seu próprio pensamento utilizando como peça fundamental Henry More. Newton, como More, se contrapõe ao conceito cartesiano de espaço. “O espaço não é a extensão cartesiana que se move em torno dos corpos, e que Descartes identifica com eles. Esse espaço será, no máximo, o relativo, que tanto os cartesianos como os aristotélicos tomam erradamente pelo espaço absoluto” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 155). Sobre a estrutura interna do espaço, “Newton a descreve em termos que nos recordam vivamente a análise feita por Henry More. [...] ‘Separar real e efetivamente suas ‘partes’ é tão impossível quanto ‘dividir’ o espaço de More, uma impossibilidade que não exclui fazer distinções e divisões ‘abstratas’ ou lógicas” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 158). Isso implica, “para Henry More, tanto quanto para Newton, a infinitude e a continuidade do espaço absoluto” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 158). Esse é, para ambos, infinito e eterno (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 159).

Quanto à sua concepção de matéria, também nela vemos a figura de More.“As propriedades essenciais que Newton lhe atribui são quase as mesmas listadas por Henry More, pelos velhos atomistas e pelos modernos partidários da filosofia corpuscular: extensão, dureza, impenetrabilidade, mobilidade” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 165). Newton acrescenta aí a inércia. Quanto à gravidade, diz Koyré, cinco anos após a publicação dos Principia, Newton afirmará que “deve ser um espírito, isto é, seja o espírito da natureza de seu colega Henry More, ou, mais simplesmente, Deus” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 171).

Assim, o universo de Newton é “um mundo [...] imenso num espaço infinito, um mundo governado pela sabedoria e movido pelo poder de um Deus Todo-Poderoso e Onipresente” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 180). Ele é “um sistema extremamente interessante e bastante consistente de “filosofia corpuscular” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 195). Newton “concebe os componentes materiais do universo, isto é, as partículas duras e indivisíveis, como submetidas à ação de todo um sistema de várias forças não materiais de atração e repulsão” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 196). Tais forças são necessárias, elas são responsáveis pela coesão das partículas materiais que compõe os corpos. Trata-se, em última análise, da “ação constante no mundo do Deus Onipresente e Todo-Poderoso” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 206). É ela que “dá ao mundo sua estrutura e sua ordem” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 206). Trata-se do que Koyré diz em 1954: “Átomos democriteanos no espaço de Platão - ou de Euclides: compreende-se bem que Newton tenha tido necessidade de um Deus para manter a ligação entre os elementos constitutivos de seu Universo” (KOYRÉ, 1971KOYRÉ Alexandre. De l’influence des conceptions philosophiques sur l’évolution des théories scientifiques. In: Études d’histoire de la pensée philosophique. Paris: Gallimard , 1971. p. 253-270., p. 270).

A ideia da liberdade do pensamento não desaparece na história de Koyré. É evidente que, para ele, a retomada por Newton das concepções de More não foi uma atitude necessária. Certamente não foi por sua razão ou entendimento que ele o fez, nem foi constrangido externamente. Ele o fez por uma escolha, pela autocracia de seu pensamento. Portanto, em Koyré, a passagem da ciência aristotélica e medieval para a ciência moderna não foi um processo histórico que teve como motor uma natureza humana racional. As novas teorias científicas que a caracterizaram foram construídas por atos da vontade, pela possibilidade de escolha dos ancestrais intelectuais dos autores que as elaboraram. Daí tal passagem não ser previsível. Daí, na história koyreana da física newtoniana, vermos a figura curiosa de Henri More.

Considerações finais: A possibilidade do agir histórico

A racionalização em excesso para Koyré, lembremo-nos, é “estúpida”. O século XVIII é um século “superficial, que ignora a história, suas potências, as forças tumultuosas da natureza humana” (KOYRÉ, 2016KOYRÉ, Alexandre. L’âge de la raison: de Bacon à Voltaire. In: REDONDI, Pietro .(ed.) De la mystique à la science. Paris: Éditions EHESS, 2016. p. 152-160., p. 154). Como destaquei, ele admitia a ideia da superioridade da vontade sobre o entendimento. Preocupado com as produções do espírito, Koyré levou essa ideia para a história do pensamento religioso, filosófico e científico. É o que vemos na maneira pela qual ele conecta os autores que compõem um movimento de ideias, ou seja, na maneira pela qual ele concebe a relação de influência. As transformações, as mutações, o movimento de autoformação do pensamento científico não têm causa interna, nem externa, em nome de influências determinantes, unilaterais. Para Koyré, era preciso reconstruir o complexo de conceitos, debruçar-se sobre a parte racional, conceitual, das construções do espírito. No entanto, era preciso não compartilhar daquela ingenuidade da filosofia do século XVIII. Era preciso - trabalho de um historiador - apreender o momento de criação daquelas produções, as atitudes criadoras, atitudes da vontade, de liberdade, irracionais, isto é, não determinadas, sem causa.

Em Koyré, a admissão da liberdade no fundo do ser o coloca automaticamente na história e explica sua mudança, não a subsumindo em uma lógica causal, de encadeamento necessário, ou em uma lógica determinista. Ela funda o ser histórico. Em seus termos, ela funda a historicidade do pensamento. A admissão dessa filosofia da liberdade reflete sua teoria da história, o fundamento de sua obra historiográfica, sua história do pensamento marcadamente descontinuísta.

Mas, sem dúvida, essa teoria da história contém um problema significativo. Se tal nível de liberdade é admissível, qual o sentido do estudo histórico? Se um autor é, em última instância, o responsável pelos fundamentos essenciais de seu pensamento, para que nos preocuparmos com seu contexto histórico? Tal filosofia não parece implicar a escrita de uma história que toma as construções do espírito como algo que se desenvolve em uma bolha totalmente desligada de seu contexto? Sua aceitação, por parte de Koyré, não o levaria a fazer um trabalho bem distinto daquele que ele fez?

Com Bernard Groethuysen, autor cogitado para integrar a École des Annales (BLOCH, [1929] 1994BLOCH, Marc.. [Correspondência]Destinatário: Lucien Febvre. Paris, out. 1929. In: Marc Bloch - Lucien Febvre - Correspondance. Tomo I. Paris: Fayard, 1994., p. 224-225), Koyré acreditava que o historiador deveria se preocupar com “o meio vivo donde saiu a ideia,” com o “espírito de uma época” (GROETHUYSEN, 1995GROETHUYSEN, Bernard. Dilthey et son école. In: GROETHUYSEN, Bernard. Philosophie et histoire. Paris : Bibliothèque Albin Michel, 1995. p. 55-71., p. 63). Entretanto, como indica indiretamente Chartier e de modo preciso Salomon, tal preocupação situa-se bem longe daquela de Lucien Febvre, em 1942, em Le problème de l’incroyance au XVI e siècle: la religion de Rabelais, ligada a uma história totalizante, para o qual é preciso situar um domínio do conhecimento, por exemplo, a ciência, “em sua época num quadro de relações que as articule com todas as outras atividades humanas de um período” (SALOMON, 2014SALOMON, Marlon. O problema do pensamento outro em Alexandre Koyré e Lucien Febvre . História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 7, n. 15, 2014, p. 124-147. Disponível em: https://tinyurl.com/y5epfmbw. Acesso em: 03 jan. 2022.
https://tinyurl.com/y5epfmbw....
, p. 29). Isso porque, em Koyré, o interesse pelo particular não é subsumido no delineamento do “espírito de uma época”, tomado como um princípio imanente a partir do qual poder-se-ia explicá-lo. Isso estaria em contradição com sua filosofia da liberdade.

Em O conceito de anacronismo e a verdade do historiador, a descrição e análise de Jacques Rancière da obra do cofundador dos Annales, Lucien Febvre, é particularmente clara para compreendermos tal contradição. Na contramão da atitude comum de destacar as diferenças entre o paradigma de cientificidade da história encarnado por Febvre e aquele que o teria antecedido, caracterizado pelo encadeamento necessário à la Hegel, Rancière os aproxima.

Como Rancière afirma, ambos suprimem a condição de possibilidade do agir histórico. Ambos são anti-históricos, tentam subsumir a mudança, o tempo, o qual concebem como “a imagem imóvel da eternidade imóvel” (RANCIÈRE, 2011RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon. História, verdade e tempo. Chapecó: Argos, 2011. p. 21-50., p. 26). Assim, entendendo-o como cópia da eternidade, tentam “resgatar o tempo - a falsidade do devir” (RANCIÈRE, 2011RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon. História, verdade e tempo. Chapecó: Argos, 2011. p. 21-50., p. 26). Voilà a proximidade. São duas maneiras de fazer tal resgate. A primeira descrita por Rancière é aquela encarnada por Hegel. Nas palavras de Rancière, “é a ordem causal, que coloca o encadeamento da causa e do efeito no lugar do antes e do depois dos acontecimentos” (RANCIÈRE, 2011RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon. História, verdade e tempo. Chapecó: Argos, 2011. p. 21-50., p. 27). Ela indica uma “ordem lógica” da “implicação recíproca” dos acontecimentos (RANCIÈRE, 2011RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon. História, verdade e tempo. Chapecó: Argos, 2011. p. 21-50., p. 27). Ela “consiste em subsumir o tempo numa intriga de encadeamento necessário de causas e efeitos segundo um princípio de transcendência” (RANCIÈRE, 2011RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon. História, verdade e tempo. Chapecó: Argos, 2011. p. 21-50., p. 28). Segundo Rancière, trata-se de uma

forma inaugurada por Políbio e aperfeiçoada por Santo Agostinho e Bossuet que faz da história um encadeamento providencial. Entre os séculos XVIII e XIX, essa história providencial se racionalizou. Tomou, para começar, a forma laicizada da história universal como história do desenvolvimento progressivo do espírito humano, em seguida a forma cientificizada de causas extraídas necessariamente das condições da ação humana (RANCIÈRE, 2011RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon. História, verdade e tempo. Chapecó: Argos, 2011. p. 21-50., p. 29).

Na segunda maneira de resgatar o tempo, subsumir a “falsidade do devir”,

trata-se de constituir o próprio tempo como princípio de imanência subsumindo todos os fenômenos numa lei de interioridade. De modo que a verdade da história é a imanência do tempo como princípio de copresença e copertencimento dos fenômenos. O tempo funciona, assim, como semelhança ou substituto da eternidade. Ele se desdobra, sendo o princípio de presença - de eternidade - interior à temporalidade dos fenômenos (RANCIÈRE, 2011RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon. História, verdade e tempo. Chapecó: Argos, 2011. p. 21-50., p. 28).

O particular é suprimido em detrimento da superioridade do social, vista como um todo que carrega em si a condição de possibilidade da existência histórica. Febvre não aceita a célebre tese de Abel Lefranc de que Rabelais era um ateu, porque, segundo ele, não era possível, seu tempo não permitia não ser cristão no século XVI. Rabelais, como caso particular, é diluído em sua época, em seu tempo. Em Febvre, “a regra geral e a ilustração particular são indiscerníveis.” Rabelais é subsumido na sociedade cristã - suas práticas, seus ritos e costumes - quinhentista.

Em Febvre, como em Hegel, há um princípio ao qual o agir humano está submetido; um princípio de imanência, no primeiro, um de transcendência, no segundo. Tanto um quanto outro “oculta[m] as condições mesmas de toda historicidade” (RANCIÈRE, 2011RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon. História, verdade e tempo. Chapecó: Argos, 2011. p. 21-50., p. 47). Suprimem o agir histórico, não dão espaço para o particular. Não dão espaço para ação livre, irracional, não necessária, histórica. Pois, como Rancière diz, “há história à medida que os homens não se ‘assemelham’ ao seu tempo, à medida que eles agem em ruptura com o ‘seu’ tempo, com a linha de temporalidade que os coloca em seus lugares impondo-lhes fazer do seu tempo este ou aquele ‘emprego’” (RANCIÈRE, 2010RANCIÈRE, Jacques. O conceito de anacronismo e a verdade do historiador. In: SALOMON, Marlon. História, verdade e tempo. Chapecó: Argos, 2011. p. 21-50., p. 47). Em Koyré, a liberdade humana é uma concepção realista que se manifesta como condição de possibilidade do agir histórico.

Portanto, tal ideia de liberdade, fundamento da ucronia, coexiste com a ideia de que não há, não encontramos na experiência, homem anterior à sociedade, aos diversos contextos que a constituem - sim, pois não há “um” meio, “um” contexto histórico homogeneizante. Mas diante deles, a possibilidade de sujeitar ou não sua vontade é aberta, a possiblidade de ruptura com o “tempo” existe, a mudança, o agir histórico, é possível. Não se trata de saltos históricos, que colocariam os homens, como Febvre criticava em Abel Lefranc, à frente de seu tempo. Trata-se de passos, que ao longo da história, poderiam ganhar grandes dimensões. Nicolau de Cusa estava inserido, ao mesmo tempo, no contexto da cosmologia medieval, no contexto das teorias gregas ainda conhecidas da infinitude do mundo, de Diógenes e Laércio, no contexto das discussões teológicas - claro, dentre outros - e optou por seguir esse último, ao afirmar que o universo era intérmino (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 28). O meio de Copérnico era igualmente heterogêneo. Era formado pelo de Cusa, pela astronomia ptolomaica, mas também por Platão e Pitágoras, e escolheu esses últimos para se inspirar e afirmar uma nova astronomia (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 37). O meio de Galileu era formado por todos esses e o de Bruno, mas no debate sobre a finitude ou infinitude do universo, ele optou por não tomar nenhuma posição, embora, de acordo com Bruno e Nicolau de Cusa, ele tenha negado um centro do universo (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 57). O meio de Newton era formado - claro, dentre outros - pelo de Descartes e pelo de Henri More, e ele optou por seguir esse último ao afirmar sua concepção de um espaço absoluto (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 157). Os personagens da história de Koyré têm outra opção. Não dão saltos, mas, por vezes, optam por caminhos não lógicos, não coerentes com as concepções mais admitidas em seu heterogêneo meio, escolhas que, também por vezes, desempenham um papel importante na história, provocando, a longo prazo, transformações, revoluções, mutações.

Daí a relação de dependência e, ao mesmo tempo, de autonomia dos campos do saber a partir da qual Chartier descrevia a “maneira de Koyré” explicar os processos de transformação, a passagem de um sistema a outro, de um período a outro. O complexo e múltiplo meio dos personagens de sua história, os vários contextos simultâneos que descrevia - cada um com sua temporalidade própria - estavam construídos sobre três principais campos: ciência, religião e filosofia. Foi devido ao seu entrecruzamento - encontro indicador de certa dependência - que, segundo Koyré, houve a revolução científica do século XVII. Mas ela também só se deu graças a uma relação de autonomia, manifestada singularmente em atitudes de liberdade, que justamente tornaram possíveis tais interligações rejeitadas pela tradição.

Isso significa que a história de Alexandre Koyré trazia em seu cerne uma concepção de tempo que não era, como descrevia Antoine Prost, “nem uma linha reta [como a dos historiadores positivistas à época], nem uma linha quebrada feita de uma sucessão de períodos [à la Annales] (PROST, 2010PROST, Antoine. Temps. In: DELACROIX, C. et al. Historiographies II : Concepts et débats. Paris: Gallimard , 2010. p. 903-911., p. 910). Como Koyré dizia outrora em um pequeno e esclarecedor artigo, “Filosofia da história”, “a história se nos apresenta como se tivesse sido cortada em fatias. A história se divide em histórias” (KOYRÉ, 2010KOYRÉ, Alexandre. Filosofia da história. Tradução: Fábio Ferreira de Almeida. In: SALOMON, Marlon. Alexandre Koyré: historiador do pensamento. Goiânia: Almeida & Clément Edições, 2010. p. 49-61., p. 50). Em sua obra, o tempo é múltiplo, se dilui em linhas que se entrecruzam graças à liberdade humana de fazer delas outros “empregos”, como dizia Rancière, formando o novo, outro tempo.

Referências

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  • BLOCH, Marc.. [Correspondência]Destinatário: Lucien Febvre. Paris, out. 1929. In: Marc Bloch - Lucien Febvre - Correspondance. Tomo I. Paris: Fayard, 1994.
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  • LALANDE, André. Vocabulaire technique et critique de la philosophie. 10ª ed. Paris: PUF, 2018.
  • MACHADO, Hallhane. Da crise na razão à razão na crise. Goiânia: Editora UFG, 2019.
  • MACHADO, Hallhane. A liberdade do pensamento: estudo sobre o fundo místico da história de Alexandre Koyré. 2021. Tese (doutorado em história) - Programa de Pós-graduação em história, UFG, Goiânia, 2021.
  • PROST, Antoine. Temps. In: DELACROIX, C. et al. Historiographies II : Concepts et débats. Paris: Gallimard , 2010. p. 903-911.
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  • SALOMON, Marlon. Alexandre Koyré e o nascimento da ciência moderna. In: Alexandre Koyré: historiador do pensamento. Goiânia: Almeida & Clément Edições , 2010. p. 75-96.
  • 1
    Não é possível tratar detalhadamente desse contexto neste artigo. Dediquei-me ao tema em “Da crise na razão à razão na crise” (2019MACHADO, Hallhane. Da crise na razão à razão na crise. Goiânia: Editora UFG, 2019.).
  • 2
    Seria possível dispensar muitas páginas a essa concepção tão presente na obra de Koyré. De fato, dediquei-me a ela em toda primeira metade de minha tese de doutorado, A liberdade do pensamento: estudo sobre o fundo místico da história de Alexandre Koyré” (2021MACHADO, Hallhane. A liberdade do pensamento: estudo sobre o fundo místico da história de Alexandre Koyré. 2021. Tese (doutorado em história) - Programa de Pós-graduação em história, UFG, Goiânia, 2021. ), analisando-a em várias de suas obras, algumas inéditas. Infelizmente, por falta de espaço, não posso delongar-me mais aqui.
  • 3
    Utilizo a noção de tônus muscular (estado de tensão dos músculos, dinâmico, que prepara para o movimento) no mesmo sentido que Jean-François Braunstein a emprega ao falar da existência de uma unidade de “inspiração” - isto é, não de tema ou de objeto - na obra de Georges Canguilhem (ALMEIDA; CAMOLEZI, 2016ALMEIDA, Tiago Santos; CAMOLEZI, Marcos. Entrevista com Jean-François Braunstein. Intelligere, [S. l.], v. 2, n. 1, p. 156-171. 2016. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revistaintelligere/article/view/114452. Acesso em: 07 fev. 2020.
    https://www.revistas.usp.br/revistaintel...
    , p. 170-171). Essa noção é particularmente conveniente para explicar a obra de Koyré. A ideia da liberdade do pensamento, como tônus de sua obra historiográfica, é a condição de possibilidade da mudança, do histórico, do acontecimento, do movimento.
  • 4
    Mas “não nos esqueçamos de que a ideia de uma entidade extensa e imaterial não era de modo algum estranha ou mesmo incomum. Muito pelo contrário: tais entidades estavam representadas abundantemente, tanto na vida diária desses homens quanto em suas experiências científicas” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 128). Koyré dá, como exemplos, a ideia de luz, de gravidade e de éter.
  • 5
    “Não podemos ‘desimaginar o espaço ou afugentá-lo do pensamento. Podemos imaginar ou pensar que qualquer objeto desapareça do espaço; não podemos imaginar o desaparecimento do próprio espaço” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 145). Algumas dessas propriedades são as que “Kant haveria de redescobrir cem anos depois. Contudo, tal como Descartes, Kant não inclui entre elas a indivisibilidade, o que o impediu de relacionar o espaço a Deus e o obrigou a colocá-lo em nós mesmos” (KOYRÉ, 1986KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Tradução de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986., p. 144).

INFORMAÇÕES ADICIONAIS

  • Financiamento

    Capes.
  • Modalidade de avaliação

    Duplo-cega por pares.
  • Aprovação no comitê de ética

    Não se aplica.
  • Contexto de pesquisa

    O artigo deriva da tese “A liberdade do pensamento: estudo sobre o fundo místico da história de Alexandre Koyré,” orientada por Marlon Jeison Salomon, na Universidade Federal de Goiás, Programa de Pós-graduação em História, defendida no ano de 2021. Acesso em: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tede/12028.
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    O artigo não é um preprint.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Maio 2022
  • Revisado
    09 Mar 2023
  • Aceito
    15 Mar 2023
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