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As Escrevivências no ensino de Terapia Ocupacional sobre/com as juventudes

"Escrevivências" in the teaching of Occupational Therapy for/with youth

Las Escrevivências en la enseñanza de la Terapia Ocupacional sobre/con las juventudes

Resumos

Há um imperativo de se pensar uma formação graduada em Terapia Ocupacional atenta às necessidades juvenis. Nesse sentido, hipotetizamos que as Escrevivências de Conceição Evaristo poderiam mediar a aprendizagem crítica sobre as juventudes. O objetivo deste artigo é investigar o processo de ensino e aprendizagem estético, ético e político de estudantes de Terapia Ocupacional por meio de um projeto de ensino pautado nas Escrevivências. Trata-se de uma pesquisa educacional que se utilizou de informações pedagógicas de uma disciplina ministrada remotamente. Estudantes estabeleceram contato com jovens diversos para pensar aspectos coletivos dentro de narrativas singulares de vida. Os achados provêm da análise do diário de campo da monitora, da transcrição das monitorias virtuais, do trabalho final e de um grupo focal. Identificamos processos cognitivos relevantes ligados à alteridade. Quanto à aprendizagem estética, crítico-social e ético-política, debatemos as limitações.

Palavras-chave
Terapia ocupacional; Ensino superior; Adolescência; Juventudes; Metodologias de ensino


It is imperative to think about graduate training in occupational therapy that is mindful of the needs of young people. In this regard, we hypothesized that the writings of Conceição Evaristo can help mediate critical learning about youth. The aim of this study was to investigate the aesthetic, ethical and political teaching and learning process of occupational therapy students based on a teaching project grounded in these writings. We conducted an educational study using pedagogical information from a remotely taught subject. Students established contact with various young people to think about collective aspects within singular life narratives. The findings resulted from the analysis of the field diary of the subject monitor, transcriptions of online tutoring, the students’ end of course project and a focus group. We identified relevant cognitive processes linked to otherness. We also discuss the limitations of aesthetic, critical-social and ethical-political learning.

Keywords
Occupational therapy; Higher education; Adolescence; Youth; Teaching methodologies


Existe el imperativo de pensar en una formación graduada en Terapia Ocupacional que esté atenta a las necesidades juveniles. En ese sentido, lanzamos la hipótesis de que las Escrevivências de Conceição Evaristo podrían mediar el aprendizaje crítico sobre las juventudes. El objetivo de este artículo es investigar el proceso de enseñanza y aprendizaje estético, ético y político de estudiantes de terapia ocupacional a partir de un proyecto de enseñanza con base en las Escrevivências. Se trata de una investigación educativa que utilizó informaciones pedagógicas de una asignatura dictada remotamente. Los estudiantes establecieron contactos con jóvenes diversos para pensar aspectos colectivos dentro de narrativas singulares de vida. Los hallazgos provienen del análisis del diario de campo de la monitora, de la transcripción de los monitoreos virtuales, del trabajo final y de un grupo focal. Identificamos procesos cognitivos relevantes vinculados a la alteridad. Con relación al aprendizaje estético, crítico-social y ético-político, discutimos las limitaciones.

Palabras clave
Terapia Ocupacional; Enseñanza superior; Adolescencia; Juventudes; Metodologías de enseñanza


Introdução

Múltiplas são as concepções sobre a adolescência e a juventude; e no meio acadêmico, muitas delas são destituídas do olhar sociocultural. Ora naturalizam esse tempo social pela noção de etapas universais do desenvolvimento, atribuindo à puberdade a causa de várias crises, riscos inerentes ou sintomatologia comportamental; ora abordam a condição de incompletude em transição para a vida adulta, dentro de uma visão adultocêntrica11 Bock AMB. A adolescência como construção social: estudo sobre livros destinados a pais e educadores. Psicol Escol Educ. 2007; 11(1):63-76.,22 Ozella S. Adolescência: um estereótipo ou uma construção histórico-social? In: Silva EA, Michelli D, organizadores. Adolescência, uso e abuso de drogas: uma visão integrativa. São Paulo: Fap-Unifesp; 2011. p. 31-49..

Tais concepções destituídas do olhar histórico-social são perniciosas às políticas públicas de juventude, impossibilitando qualquer movimento que não seja de tutela33 Abramo H. Estação juventude: conceitos fundamentais - ponto de partida para uma reflexão sobre políticas públicas de juventude. Brasília: SNJ; 2014. . A experiência infantojuvenil ocorre no paradoxo da socialização e da liberdade, ressaltando que na modernidade se multiplicam dispositivos disciplinares que circunscrevem o tempo social da juventude às expectativas etárias, de performances, punindo, criminalizando ou medicalizando modos de vida que não respondem às expectativas de se criar cidadãos úteis e ajustados à ordem social e econômica vigente. Sobre isso, Bock11 Bock AMB. A adolescência como construção social: estudo sobre livros destinados a pais e educadores. Psicol Escol Educ. 2007; 11(1):63-76. nos alerta que as práticas decorrentes da visão liberal de juventude são remediativas, curativas e terapêuticas, pois, ao postularem um desenvolvimento natural do ser humano, elas se propõem a observar seu trajeto, cuidando para que não ocorram desvios na rota natural. Assim, as técnicas usadas por profissionais que lidam com a população juvenil, sejam elas quais forem, reforçariam a imagem de um ser jovem em conflito, imaturo e inacabado.

Na esteira de Silva e Lopes44 Silva CR, Lopes RE. Adolescência e juventude: entre conceitos e políticas públicas. Cad Ter Ocup UFSCar. 2009; 17(2):87-106. e autores supracitados, entendemos a juventude com base na produção e na inserção do jovem em relações sociais, porque, em se tratando de um tempo social, é configurada pela leitura do coletivo e da articulação entre processos sociais. A relevância primordial que permeia os debates sobre juventude se dá no fato que, conforme são conceituadas e interpretadas as juventudes, novos parâmetros de (des)cuidado são estabelecidos, também influenciando a forma pela qual os deveres e direitos dos jovens são vistos, bem como suas demandas e as políticas públicas necessárias para atendê-las. Há, desse modo, o imperativo de se pensar uma formação graduada em Terapia Ocupacional crítica e atenta às reais condições, necessidades e vulnerabilidades relacionadas às juventudes.

Em vista desse desafio educacional, esta pesquisa tem por objetivo investigar o processo de ensino-aprendizagem mediado pelas Escrevivências, com vistas à formação crítica sobre juventude/adolescência. Mais especificamente, vamos descrever quais estratégias foram utilizadas para a realização das Escrevivências como exercício de sensibilidade para o estudo das diferentes juventudes; e compreender os processos cognitivos relacionados à alteridade, à ética, à estética e à política no contato com as vivências/cultura de outros jovens55 Castro EV. Perspectival anthropology and the method of controlled equivocation. J Soc Anthropol Lowland South America. 2004; 2(1):1-22. .

Método

Escrevivência é um termo cunhado por Conceição Evaristo, uma mulher negra, escritora e mestre em Literatura Brasileira. Evaristo66 Acauan AP. “Esse lugar também é nosso”: escritora Conceição Evaristo busca vaga na Academia Brasileira de Letras [entrevista]. Rev PUCRS [Internet]. 2018 [citado 1 Abr 2023]. Disponível em: https://www.pucrs.br/revista/esse-lugar-tambem-e-nosso/
https://www.pucrs.br/revista/esse-lugar-...
explica que esse termo nasceu em 1994, em sua dissertação de mestrado, expressando um jogo de palavras entre escrever, viver, escrever-se vendo e escrever vendo-se.

“Escreviver” está na base nas vivências das mulheres africanas escravizadas que, entre tantas tarefas, tinham o hábito da contação de histórias para que meninos e meninas da casa-grande adormecessem. As “mães pretas” tinham suas palavras domesticadas, visto que eram utilizadas para acalmar as crianças. Contrapondo a isso, as Escrevivências de mulheres pretas podem ir muito além da fala resignada, domesticada, tendo um outro objetivo: incomodar e acordar a casa-grande66 Acauan AP. “Esse lugar também é nosso”: escritora Conceição Evaristo busca vaga na Academia Brasileira de Letras [entrevista]. Rev PUCRS [Internet]. 2018 [citado 1 Abr 2023]. Disponível em: https://www.pucrs.br/revista/esse-lugar-tambem-e-nosso/
https://www.pucrs.br/revista/esse-lugar-...
,77 TV Brasil. “Não escrevemos para adormecer os da casa-grande, pelo contrário”, diz Conceição Evaristo sobre escritoras negras [Internet]. San Bruno: Youtube; 2017 [citado 1 Abr 2023]. Vídeo: 1:04 seg. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6pCq9E-d8_o
https://www.youtube.com/watch?v=6pCq9E-d...
.

Neves e Heckert88 Neves GS, Heckert ALC. Escrevivência: uma ferramenta metodológica de análise. Mnemosine. 2021; 17(1):139-62. utilizaram as Escrevivências como estratégia de análise das vivências de mulheres negras periféricas, revelando opressões e formas de enfrentamento. O trabalho é semelhante ao de Soares e Machado99 Soares LV, Machado PS. “Escrevivências” como ferramenta metodológica na produção de conhecimento em psicologia social. Rev Psicol Polit. 2017; 17(39):203-19., que também recorreram a tal escrita para narrar a história de mulheres em vulnerabilidade por meio do encontro com a própria história.

Neste trabalho, propusemos a Escrevivência como mediador do ensino. Os estudantes foram estimulados a entrar em contato com outros jovens de uma realidade distante (ou não tão distante assim) da sua, a fim de conhecê-los em profundidade. Para tanto, vários recursos de mediação foram postos em ação para que os interlocutores entrassem em contato com suas histórias pessoais (mas nunca individuais), em cruzamento com as experiências coletivas e ancestrais. Assim, a aprendizagem da alteridade se fez imprescindível, dentro de um constante interrogar a si e ao outro, em um plano de horizontalidades e diferenças.

Tabela 1
Dimensões da aprendizagem desencadeadas pelas Escrevivências

A pesquisa foi desenvolvida pelo docente responsável e a bolsista de monitoria, com base no material pedagógico produzido em um componente curricular do curso de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Pelotas, ofertado em formato remoto, no primeiro semestre de 2021. A disciplina contou com 15 semanas e uma carga horária total de 54 horas, tendo por objetivos: apresentar aos estudantes as diferentes adolescências/juventudes pelas determinações socioculturais, favorecendo a ressignificação das representações estigmatizantes e a proposição de intervenções sensíveis às diferentes realidades, bem como expor possíveis contextos de intervenção em Terapia Ocupacional.

Nessa disciplina, criou-se o projeto de ensino Escrevivências em sua primeira versão. A turma contou com dez estudantes matriculados, que foram divididos em duplas. Cada uma delas ficou incumbida de encontrar um(a) jovem a fim de conhecê-lo(a) por meio de contatos virtuais e, assim, produzir suas Escrevivências. Os perfis encontrados foram os mais variados e trouxeram diferenças raciais, de gênero, vulnerabilidade social e deficiência para o entendimento com/sobre juventudes.

O papel dos estudantes foi o de mediar as narrativas apresentadas, entendendo o cotidiano e a sociabilidade desses jovens. Para tanto, poderiam apresentar aos jovens (ou experimentar com eles) linguagens diversas, desde que tais mecanismos potencializassem os enunciados. Havia, nesse sentido, a preocupação em gerar novas percepções sobre a própria história e, com isso, estranhamentos capazes de gerar movimentos libertadores. A despeito do convite à experimentação, as duplas pediram para roteirizar os encontros e sugestões de recursos que as auxiliassem a acessar tais histórias. Para isso, utilizaram alguns métodos como o ecomapa1010 Correia RL. O ecomapa na prática terapêutica ocupacional: uma ferramenta para o mapeamento das percepções sobre a participação nas redes sociais de suporte. Rev Interinst Bras Ter Ocup. 2017; 1(1):67-87., o mapeamento corporal1111 Gastaldo D, Rivas-Quarneti N, Magalhães L. Body-map storytelling as a health research methodology: blurred lines creating clear pictures. Forum Qualitat Soc Res. 2018; 19(2):1-26. , fotografias e desenhos.

Foram previstos, ao longo da realização do projeto, pelo menos três encontros virtuais com cada dupla. Tais momentos se deram pela plataforma Google Meet, com duração máxima de uma hora. Eram reuniões de acompanhamento dos estudantes por parte da monitora, momento no qual eles traziam impressões causadas pelo contato com os jovens, bem como possíveis dúvidas e dificuldades. Esses encontros virtuais foram gravados e os dados, transcritos e avaliados no sentido pedagógico pelo docente responsável.

Os dez estudantes matriculados na disciplina, todos maiores de 18 anos, consentiram no uso das informações nesta pesquisa mediante assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. As informações analisadas foram extraídas: i) do diário de campo da monitora; ii) da gravação transcrita das monitorias virtuais; iii) do registro da apresentação final do projeto Escrevivência; iv) dos dados da avaliação coletiva realizada pelo docente ao final do semestre no formato de um grupo focal1212 Trad LAB. Grupos focais: conceitos, procedimentos e reflexões baseadas em experiências com o uso da técnica em pesquisas de saúde. Physis. 2009; 19(3):777-96.

Os achados sofreram a Análise Temática (AT) proposta por Braun e Clarke1313 Braun V, Clarke V. Using thematic analysis in psychology. Qual Res Psychol. 2006; 3(2):77-101. . A AT é um método de análise qualitativa que identifica e relata padrões/temas com base em dados qualitativos, partindo de uma organização e descrição minuciosa de um banco de dados e colaborando para uma análise interpretativa deles1414 Souza LK. Pesquisa com análise qualitativa de dados: conhecendo a análise temática. Arq Bras Psicol. 2019; 71(2):51-67.. Seu diferencial é o descompromisso prévio com uma teoria, o que permite construções de temas e diálogos teóricos norteados pelo objetivo e pela dinâmica empírica.

Após a familiarização com os dados – transcrição, leitura e releitura dos materiais –, seguimos com codificação das falas dos estudantes, seguida da geração de categorias temáticas e, depois, proposição de temas direcionadores para a produção deste artigo1313 Braun V, Clarke V. Using thematic analysis in psychology. Qual Res Psychol. 2006; 3(2):77-101. . Foram definidos quatro temas para aprofundamento: aprendizagem da alteridade, aprendizagem estética, aprendizagem crítico-social, aprendizagem ético-política. Cada uma dessas dimensões cognitivas será detalhada mais à frente. Esta pesquisa foi aprovada no Comitê de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas, com o registro CAAE: 54950521.7.0000.5317.

Achados

O Quadro 1 sintetiza o perfil das juventudes que se colocaram como interlocutores de cada dupla, destacando também os recursos textuais usados durante as Escrevivências. Todos os perfis correspondem a algum marcador social da diferença, isto é, um sistema classificador relacionado à organização da experiência e da situação juvenil1515 Zamboni M. Marcadores sociais da diferença. Sociologia: grandes temas do conhecimento (especial desigualdades). Soc Espec. 2014; 1:14-18..

Quadro 1
Perfil juvenil segundo os marcadores sociais e recursos usados durante a Escrevivência

A aprendizagem da alteridade

Almeida1616 Almeida DERG. As atividades de tradução cultural: proposições ético-metodológicas baseadas no perspectivismo ameríndio para a pesquisa participativa sobre as ocupações. J Occupational Sci. 2023; 30:1-13. , ao propor as “Atividades de Tradução Cultural”, método de pesquisa e “intervenção” baseado no perspectivismo ameríndio, coloca à Terapia Ocupacional desafios contemporâneos relacionados à interculturalidade e à alteridade. Apoiado no antropólogo Viveiros de Castro, o autor diz que o pensamento ocidental trabalha com a certeza de que existe um único mundo e as diferenças culturais são decorrentes dos mais variados pontos de vista. Já a cosmologia indígena inverte essa lógica, afirmando que existem múltiplos mundos e uma única percepção. É que as diferentes condições materiais e simbólicas criam pluralidade de mundos habitados e cada mundo condiciona a percepção dos seres. Nesse sentido, abre-se um problema ético: como criar uma abertura ética capaz de conectar mundos?

Quando nativo e observador começam a falar de fatos existentes em suas culturas, embora pareçam se referir à mesma coisa, de fato não o fazem quando enunciadas por nossos outros ontológicos. São mundos heterogêneos e traduções equívocas, já que há possibilidade de articular conexões parciais entre eles. A equivocação, neste sentido, implica desde já a tradução, cujo propósito é não perder de vista a diferença entre ontologias diversas. “É a partir de traduções equívocas e politicamente motivadas que poderemos interconectar parcialmente a pluralidade de mundos sem torná-los comensuráveis”1616 Almeida DERG. As atividades de tradução cultural: proposições ético-metodológicas baseadas no perspectivismo ameríndio para a pesquisa participativa sobre as ocupações. J Occupational Sci. 2023; 30:1-13. . (p. 4)

Pensando no contexto desta pesquisa, o rosto do Outro que é impedido de viver questiona seu interlocutor sobre a responsabilidade que se tem na manutenção de um sistema-mundo opressor1717 Acevedo LOP. Ocupación humana: de la matriz colonial moderna hacia la construcción de saberes sociales del Sur. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia; 2021.. Isso cria uma zona de contato cultural que demanda e produz tolerância e responsabilidade.

A despeito das tecnologias usadas no ensino remoto, criar conexões foi algo desafiador. Os estudantes, pela inexperiência, demonstraram sentimento de insegurança em relação ao primeiro contato, o que, de certa forma, desencadeou significativas reflexões acerca do cuidado altero. Havia um temor em serem desagradáveis, desinteressantes ou mesmo ofensores despropositadamente.

[...] até pra gente conseguir desenvolver a conversa, como é que a gente ia perguntar, trazer o assunto e coisa e tal? Era tudo assim, sabe? De nenhuma maneira a gente queria desrespeitar, de nenhuma maneira a gente queria também forçar alguma situação ou sei lá… sabe, ser invasivo. Então eu acho que mais é isso mesmo, essa questão do acesso, de como vai falar, e até o outro sentir confiança também para se abrir, pra falar, e também querer trazer as coisas né.

(Grupo focal)

[...] também tem medo de que a pessoa fique se sentindo tipo assim ah, uma coisa tipo exótica assim, ah eu tô sendo exposto e aquelas pessoas estão ali sabe, me estudando.

(Grupo focal)

As falas acima demonstram uma preocupação inédita com a fala objetificante, com a escolha das perguntas, com o perceber o timing a fim de não ultrapassar limites culturais desconhecidos. O que estava em jogo era o desenvolvimento do olhar sensível, da habilidade de ouvir despretensiosa e gentilmente o que era dito. Importante dizer que a tarefa causou inúmeras desconfianças, pois qual seria o sentido de estar com alguém sem direcionar o diálogo em torno de problemas, deficiências e demais focos interventivos? Como permanecer minimamente confortável na presença do outro, imbuídos do desejo de produzir narrativas? Qual a finalidade terapêutica – perguntavam eles – se eu não vejo sentido nisso? Como os jovens vão se prestar a estar conosco para produzir histórias? Tais incômodos iniciais eram compensados com a busca de explicações para si e para o outro, como se, no mundo contemporâneo, qualquer contato interpessoal necessitasse ser justificado pelo ganho a que se destina.

[...] eu acho que o importante é que aquilo tenha algum sentido, e aí era isso que a gente tentava sempre, explicar o porquê que a gente tava propondo aquela atividade, até para que fizesse sentido.

(Grupo focal)

[...] até ele queria um roteiro, né, e aí a gente explicou que a ideia não era essa, sabe? Não era a gente chegar, engessar e “vamos falar sobre isso, queremos saber tal e tal coisa”, a gente sempre falou pra ele que a gente queria que ele falasse, se sentisse à vontade pra falar, pra compartilhar, né?

(Grupo focal)

O projeto Escrevivências trouxe aos estudantes realidades ao mesmo tempo próximas e distantes, que os fizeram refletir sobre diferentes juventudes e admirar suas pluralidades, apesar de, sociologicamente, podermos encontrar elementos comuns a elas que se traduzem em uma condição juvenil.

Acho que do nosso [projeto] é a relação com a cultura, né, é uma coisa completamente diferente, e que tá aqui do nosso lado... tudo completamente diferente, a ideia de festa, de casamento, de batizado... a relação com a história, com a família, conceito de família, tudo completamente diferente… e tá aqui, tá do nosso lado… é lindo, é forte, eu me emociono.

(Grupo focal)

Acho que é esse olhar, ter esse olhar assim, porque uma coisa é tu escrever um trabalho contando a tua visão, e outra coisa é tu escrever colocando a visão da pessoa que tu fez o trabalho em si, e aí eu acho que é um processo bem delicado. Eu acho que esse trabalho todo envolve uma delicadeza, uma gentileza com o outro.

(Grupo focal)

Outra contribuição do projeto Escrevivências para os estudantes foi o encontro dialógico entre suas histórias de vida e as narrativas dos jovens. O trabalho propiciou esse ambiente de trocas e aprendizagem sobre si e sobre o outro, pois estávamos interessados em uma “escrita” implicada de ambos os lados, entrelaçando as biografias e observando as semelhanças e os estranhamentos, produzindo reconhecimentos ainda que “equivocados”. Afinal, a Escrevivência também funciona como o “espelho de Oxum” pois, ao se divisar no olhar do outro, somos tomados pela autodescoberta. Sem a diferença que causa o equívoco, que não equaciona diversidades, qualquer espelho remeteria ao reflexo de Narciso.

[...] quando a gente foi lá fazer a análise de implicação e tudo mais, fui ver que não só a minha história “batia” com a história da jovem ou a história da minha dupla “batia” com a história da jovem, mas também percebi que a minha história “bate” com a história da minha dupla. Aí a gente percebe que… eu e a minha dupla já somos próximas, mas talvez alguns, algumas duplas não eram tão próximas e através desse trabalho talvez tenham podido se conhecer melhor né, então acho que foi bem legal assim.

(Dupla 1)

A aprendizagem estética

A etimologia da palavra estética vem do grego, aisthésis, que pode significar experiência, sensibilidade, percepção, sentimento. Nomeamos, assim, de aprendizagem estética o processo crescente de ser afetado sensivelmente pelo mundo1818 Bedore RC, Beccari MN. Aisthesis: uma breve introdução à estética dos afetos. Rev GEARTE. 2017; 4(3):487-98. . A aprendizagem estética guarda relação com a problematização, a criação e a imprevisibilidade; coloca-se como experiência de interrupção do fluxo cognitivo habitual, sentida como abalo, bifurcação, no sentido de que ela nos desloca e nos força a pensar1919 Kastrup V. Experiência estética para uma aprendizagem inventiva: notas sobre o acesso de pessoas cegas a museus. Informatica Educ Teor Pratica. 2011; 13(2):38-45..

Sobre isso, Virgínia Kastrup2020 Kastrup V. O Funcionamento da atenção no trabalho cartográfico. Psicol Soc. 2007; 19(1):15-22. fala de um tipo específico de cognição adjetivada de inventiva. A invenção guarda relação com o novo, em um processo que impulsiona a memória, a linguagem, a percepção e a aprendizagem. Para a cognição inventiva, não há uma sequência de estágios cognitivos que seguiriam uma ordem invariante, como se vê em algumas teorias do desenvolvimento cognitivo. Ela se assemelha ao estar à deriva, criada mediante acoplamentos com as forças do mundo2121 Kastrup V. Políticas cognitivas na formação do professor e o problema do devir-mestre. Educ Soc. 2005; 26(93):1273-88..

Kastrup2222 Kastrup V. A atenção cartográfica e o gosto pelos problemas. Rev Polis Psique. 2019; 9:99-106. afirma ainda que um obstáculo ao conhecimento sensível é o predomínio da atenção concentrada, consciente e voluntária, pelo fato de esse tipo de atenção ficar preso ao plano das representações – sujeito e objeto existem independente e previamente à ação – e à resolução de problemas. Esse tipo de atenção está voltado para a realização e a manutenção de comportamentos dirigidos às metas, ao processamento de estímulos e à apreensão de informações que interessam ao sujeito para responder adequadamente ao ambiente. Em outras palavras, trata-se de um processo instrumental focado em estímulos do mundo externo a fim de buscar informações. Muitos dos problemas da vida cotidiana estão relacionados a esse tipo de atenção, todavia devemos considerar a importância da atenção a si2323 Sade C, Kastrup V. Atenção a si: da auto-observação à autoprodução. Estud Psicol. 2011; 16(2):139-46..

A cognição inventiva prevê essa atenção direcionada para si e desinteressada do ponto de vista utilitário. Há uma espécie de suspensão do agir, “(...) uma espera sem conhecimento do conteúdo que vai se revelar, ou seja, uma espera não focalizada e por isso aberta, normalmente descrita como destituída de qualquer discriminação imediata”2323 Sade C, Kastrup V. Atenção a si: da auto-observação à autoprodução. Estud Psicol. 2011; 16(2):139-46. (p. 143). Uma atenção aberta é panorâmica, flutuante, que inicialmente faz uma varredura sem alvo predefinido “(...) até encontrar algo que, em função do estranhamento gerado, toque a atenção do cartógrafo e coloque um problema.”2222 Kastrup V. A atenção cartográfica e o gosto pelos problemas. Rev Polis Psique. 2019; 9:99-106. (p. 101).

A Escrevivência foi um convite para “olhar a si no/com o outro”, abrindo-se para a experiência que se encontra e se permitir afetar por essa conexão. É essa percepção, capaz de acessar impressões mínimas, que se conecta com a experiência estética, fazendo que “(...) se deixe contaminar pela potência da invenção presente no ato mais trivial e cotidiano.”2222 Kastrup V. A atenção cartográfica e o gosto pelos problemas. Rev Polis Psique. 2019; 9:99-106. (p. 46), a fim de exercitar a sensibilidade e a criatividade.

Como dito anteriormente, os desafios foram muitos, principalmente ao iniciar o contato com os jovens, pois entre os estudantes havia o receio de serem invasivos, inconvenientes ou mesmo julgados em suas propostas. A monitoria semanal auxiliou sobremaneira nesse quesito, pois era o momento em que reafirmamos a importância da experimentação de novas linguagens. Poemas, bloco de notas, ficção, haicai, música, crônica, colagens: qual formato textual poderia potencializar as narrativas dos jovens? E mais do que isso, para além da racionalidade científica, como estudantes poderiam lançar mão das próprias memórias e experimentação para criar a tão almejada zona de contato intercultural e fazer da Escrevivência um produto híbrido e implicado?

Trouxemos sugestões, sempre incentivando o movimento criativo dos estudantes. As duplas utilizaram o mapa corporal, o ecomapa, o desenho, fotografias e a fotovoz, demonstrando crescente disposição para a inventividade.

Figura 1
Fotografia de uma aldeia indígena.
Figura 2
Ecomapa – símbolos que qualificam as relações de apoio na percepção de um jovem.

[...] mas aí a gente teve muita sorte... eu sugeri da gente criar um instagram só pra nós, né, só pra esse projeto; aí ele disse “não, acho melhor eu faço assim ó, eu não gosto de escrever, eu mando foto pra vocês e comento, tá?”. Foi sem querer que chegamos na fotovoz.

(Dupla 1)

A gente até fez um roteiro, umas perguntas e tal, e a gente tentou começar pela linha de pergunta e resposta né, mas meio em conversa, e aí quando dava uma brecha a gente “tacava” a pergunta do roteiro, mas eu acho que… aprender a se reinventar, porque a gente viu que nem tudo a gente ia conseguir acessar através de pergunta e resposta, a gente viu que tudo depende da pessoa, tem pessoas que vão te responder melhor com pergunta e resposta. Mas ela, por exemplo, se ela tivesse muito tempo pra pensar ela já desconversava e pensava em outra coisa, aí então a gente se reinventava, pensava em atividades e tudo mais, pensava em outros jeitos.

(Dupla 4)

Acho que… um sentimento pra acrescentar além do que as gurias disseram, é que a todo momento eu pensava “meu deus, tô louco pra ver o trabalho dos outros grupos, tô louco pra mostrar o nosso, vai ser muito tri [legal] ver”. O que eu queria era que tivesse mais grupos e mais trabalhos.

(Dupla 1)

A abertura à experimentação estética, ainda que modesta, não ocorreu sem angústias. O desconhecimento sobre si, ou melhor, sobre como usar a si a serviço do encontro resultou em momentos de paralisia, frustração e sentimentos de incapacidade. Percebemos que alguns estudantes mais resistentes ao processo pedagógico ostentavam vidas repletas de privações culturais. O contato reduzido com as artes, com a literatura, com o cinema, com a dança, com o teatro, era percebido como carência, ou melhor, era nomeado como “baixa criatividade”. Esses, quase sempre, se mantinham resistentes, dizendo “Eu não estou entendendo nada dessa proposta, não vejo sentido nisso”.

Com isso, o gosto pelo espanto e pela experimentação parecia não fazer parte da biografia dos estudantes, condição essa reforçada pelo Ensino Superior. As disciplinas voltadas para aprendizagem e experimentação de recursos e atividades ministradas remotamente durante a pandemia, ou mesmo antes dela, não foram suficientes para criar atenção aberta e inventiva requerida na Escrevivência. Há que destacar, nesse aspecto, a importância da preparação, da obstinação, do exercício na aprendizagem inventiva2121 Kastrup V. Políticas cognitivas na formação do professor e o problema do devir-mestre. Educ Soc. 2005; 26(93):1273-88.. Caso as atividades humanas, bem como as técnicas artísticas, artesanais, corporais, sejam apresentadas ao longo da formação em Terapia Ocupacional como recurso mecânico para se conseguir algo, no sentido “terapêutico”, separando sujeito do objeto (representação), não há estímulo ao gosto pela problematização e pela experimentação atenta de si dentro de um processo subjetivo. Nas palavras de Kastrup2222 Kastrup V. A atenção cartográfica e o gosto pelos problemas. Rev Polis Psique. 2019; 9:99-106.:

a formação do cartógrafo depende do exercício continuado desse momento especial e decisivo, por meio de um percurso que se apoia sobre a experiência passada, mas que é diferencial e diferenciante. A linguagem tem por certo um papel, mas de modo algum pode dominar o ensino e a aprendizagem. Não se trata também de defender a prática em detrimento da teoria. Dar aula é uma prática, ler um texto é uma prática. Todavia, a linguagem não pode jamais substituir o corpo a corpo com o campo. Cabe inventar, no trabalho de campo e no trabalho de formação, espaços abertos e um tempo com pausas para o cultivo da experiência atenta, para que a aprendizagem inventiva possa ganhar corpo e para que, em última análise, possa advir o gosto pela problematização2222 Kastrup V. A atenção cartográfica e o gosto pelos problemas. Rev Polis Psique. 2019; 9:99-106.. (p. 105)

Com isso, o convite à experimentação foi percebido, frequentemente, como um desafio frustrante.

A gente tem um problema com essas coisas de recurso [técnicas artesanais, artístico-culturais e funcionais], né? Ainda mais a gente que tá num semestre, é... no limbo, que não tem, não teve umas cadeiras [disciplinas] e teve outras, faltou algumas aulas pra gente de metodologia sei lá, de recursos, né? E aí, e com o professor tem isso, ele diz “aí inventam né, façam do jeito que vocês quiserem”, só que daí não adianta, a gente vai ter ideia, mas tem que achar alguém que já fez parecido né, um fundamento.

(Grupo focal)

Com as monitorias fomos propondo aproximações com algumas linguagens artísticas; contudo, a experimentação técnica, sem grande investimento na poética, foi recorrente. Frequentemente, a angústia do não saber fazer era carregada de julgamentos, como se existisse um caminho certo definido a priori. Outros se agarravam ao pensamento prescritivo, direcionando o conteúdo dos encontros para o rastreio de “problemas ocupacionais” passíveis de intervenção, por exemplo: estruturação de rotinas por meio da gestão do tempo cotidiano, sugestão de atividades para enriquecimento da rotina etc. Ainda assim, a monitoria incitou movimentos subversivos à lógica funcional-estruturalista, que estratifica e estabelece parâmetros de desempenhos em nome do funcionamento social normal, sem conflitos, contradições e experimentações.

Aprendizagens crítico-social e ético-política

Não nos resta dúvidas de que as juventudes são plurais e as vivências cotidianas de cada jovem são únicas. Todavia, uma análise social e histórica coloca-se como um exercício de abstração, encontrando elementos comuns à vida de tantos jovens, por efeito de operadores de classe social, nacionalidade, religião, etnia, sexualidade, gênero, capacidade, condição urbana ou rural etc. É assim que, sociologicamente, somos capazes de estudar as juventudes como um grupo social.

Groppo e outros pesquisadores defendem a existência de uma “condição juvenil mais ou menos geral que, dialeticamente, informa e resulta da criação desses grupos juvenis”2424 Groppo LA. Juventudes: sociologia, cultura e movimentos. Joinville: Clube de Autores; 2016. (p. 12). A condição juvenil coloca-se como referente histórico, que determina certo modo de experimentar o presente, ou seja, as instituições, estruturas sociais e os valores.

Perceber a relação entre o local e o global, o singular e o genérico, a estrutura e a prática, eu e nós, é essencial ao pensamento crítico, fruto da dialética materialista histórica. Pois é exatamente pelo conhecimento da arquitetura das opressões em seus diversos planos e conexões é que poderemos propor ações pró-emancipatórias de cunho macropolítico2525 Hill-Collins P. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo; 2019.. Por esse motivo, escolhemos debater as aprendizagens crítico-social e ético-política no mesmo lugar.

Durante as Escrevivências, percebemos que a particularidade se sobrepôs ao todo. Isso ficou ainda mais evidente na versão final escrita entregue para avaliação. As duplas conseguiram detalhar acontecimentos e situações vivenciadas pelos jovens, contudo não chegaram ao ponto de abstrair categorias gerais, analiticamente importantes do ponto de vista sócio-histórico. Nos excertos abaixo, trazemos alguns exemplos:

[Sobre um jovem que sofreu amputação] Eu e as gurias conversando, a gente acredita que ele ainda não teve esse tempo de processar e entender que nem tudo é bênção e nem tudo é pra melhorar, então eu acho que ele ainda não chegou nisso, ele sofre uma pressão pra usar a prótese dele, né, ele sofre essa pressão pelo lado da família dele, que é bem grande [...] porque a perda dum membro não deixa de ser um luto, e ele disse que não, que ele não via desse jeito, então a gente acredita que ele ainda não chegou lá.

(Dupla 3)

[sobre uma jovem transexual] [...] quando ela começou... a gente perguntou como ela tava se sentindo no momento que ela começou a fazer reposição hormonal, e aí ela disse que ela tava sentindo que era o início da puberdade, sabe? Então, tipo é o momento dela, sabe, é o momento dela como se fosse o auge da adolescência dela sabe, então é um momento que tá tudo acontecendo, tá tudo à flor da pele.

(Dupla 2)

Quando os estudantes narraram os acontecimentos, havia uma tendência a tratar os fenômenos pela ótica individualista. Conteúdos relativos ao capacitismo, à ideologia da performance ou mesmo representações e discursos sobre o corpo belo e saudável não foram acionados para dar inteligibilidade à narrativa juvenil. No segundo excerto, o corpo ainda é visto como uma realidade natural. Não percebemos, assim, um entendimento sobre a construção social do corpo gendrificado. Em vez disso, a puberdade aparece como justificativa a-histórica, responsável por deixar “tudo à flor da pele”.

Em outra situação, o entendimento de que subjetividade e biografia são da ordem do indivíduo reforça a necessidade de mais ciências sociais nos currículos de Terapia Ocupacional. Tal valorização da dimensão individual, em detrimento de uma compreensão micropolítica e macropolítica, tem a ver com os valores da modernidade que condicionam a forma pela qual percebemos o mundo, sobretudo o neoliberalismo2626 Safatle VP, Silva Júnior N, Dunker C. Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica; 2021..

Por exemplo, a dupla responsável pelo diálogo com um jovem indígena pareceu não se dar conta de que as diferenças culturais podem privilegiar o coletivo para falar de si. “[...] a gente começou a ver que ah…, ele só fala da aldeia, ele só fala da aldeia, vamos ver se a gente arruma um jeito de ele falar mais dele... aí vamos no ecomapa.” (Grupo focal). Trata-se de uma inversão ontológica oposta ao pensamento moderno ocidental, conforme explica Viveiros de Castro55 Castro EV. Perspectival anthropology and the method of controlled equivocation. J Soc Anthropol Lowland South America. 2004; 2(1):1-22. . Em outras palavras, para dizer “quem sou”, esse jovem precisa dizer “quem somos”, incluindo elementos humanos, não humanos e ancestrais com os quais o jovem nutre relações vitais.

Talvez, em decorrência dessa mesma dificuldade em se traçar planos comuns de identificação e análise que percebemos menores avanços na aprendizagem crítico-social, bem como na aprendizagem política.

[...] eu acho que a minha história começa a se encontrar com a dela quando ela começa a falar sobre a família, né, quando ela fala sobre a dependência emocional que a família tem em relação a ela, porque eu passo por isso diariamente dentro da minha casa. Hã, também em relação aos apontamentos diante do corpo. [...] pensei em falar com ela sobre gordofobia, mas não consegui, não cheguei nesse ponto com ela. [...] eu acho que consegui trazer um pouco de eu ser uma mulher lésbica e aí tentar com o pouquinho da minha história e levando uns pontos pra nossa conversa pra que ela se sentisse mais à vontade de falar sobre ela sendo uma mulher trans, sabe?

(Dupla 2)

Esperávamos que a produção de narrativas ativadas pela ótica da racialidade, da luta de classes, pela interculturalidade, gênero/sexualidade e capacitismo acontecesse mais intensamente na Escrevivência, ao lado da abordagem micropolítica da “escrita de si”, pautada na diferença. Ambas as dimensões abririam espaço para refletir sobre os significados políticos, econômicos e culturais da justiça, da vida digna e do bem-viver.

Considerações finais

Ao investigar o processo de ensino e aprendizagem mediado pelas Escrevivências sobre a temática das juventudes, os achados ilustram processos cognitivos relevantes ligados à alteridade. Nesse sentido, o contato intercultural levou à problematização radical do lugar que o Outro ocupa na relação dialógica estabelecida. As Escrevivências materializaram questões teórico-práticas ligadas à cultura, relacionadas ao risco de tornar o outro exótico, objeto, bem como sobre o significado das diferenças na constituição das múltiplas juventudes.

Quanto à aprendizagem estética, identificamos questões significativas para o currículo de Terapia Ocupacional. Houve o convite à inventividade, dentro do que chamamos de aprendizagem estética, como experimentação de uma atenção aberta, sensível às biografias juvenis, sem foco prévio em objetivos e metas terapêuticas. Contudo, não podemos dizer que a proposta foi suficiente. Percebemos que seria necessário acolher a angústia e o agastamento dos estudantes, demorar nisso, exercitando o gosto pela reflexão e pela experimentação sem certezas. Segundo Kastrup2222 Kastrup V. A atenção cartográfica e o gosto pelos problemas. Rev Polis Psique. 2019; 9:99-106., não existe um curso ou conjunto de métodos e textos capazes de sensibilizar o estudante para a invenção. Sua formação é o mundo. Todavia, ela destaca a relevância da mediação do professor mediador, isto é, do fazer junto que inaugura uma espécie de sintonia afetiva. Ensinar seria “acompanhar um processo de aprendizagem cujo ponto de chegada é marcado pela imprevisibilidade. Colocar o problema, sustentar o problema, desenhar e redesenhar o campo problemático são os desafios”2222 Kastrup V. A atenção cartográfica e o gosto pelos problemas. Rev Polis Psique. 2019; 9:99-106. (p. 102).

De modo semelhante, acreditamos que ambas as dimensões da aprendizagem – crítico-social e ético-política – trazem metas ousadas para um único projeto. A descrição detalhada da vida dos jovens quase sempre foi carente de uma análise sócio-histórica, o que sinaliza a necessidade de maior investimento pedagógico nessa questão, pois a justa compreensão da dimensão macroestrutural atua na desnaturalização da vida social e na percepção da natureza coletiva de muitas opressões. As análises reduzidas à dimensão privada tendem ao subjetivismo, esvaziando a Escrevivência de seus significados políticos.

Em síntese, não seria prudente dizer que a Escrevivência falhou em seu objetivo pedagógico, pois por meio dela mapeamos processos cognitivos importantes. Pela primeira vez houve um estranhamento relacionado à técnica, ao uso de si e à relevância das próprias vivências para formação profissional. Tudo isso abre questionamentos mais amplos relativos ao ensino remoto, à formação na Educação Básica e à necessidade de multiplicar experiências semelhantes dentro do currículo de Terapia Ocupacional.

Por fim, ainda que esta pesquisa não tenha como objetivo investigar a relação entre o projeto Escrevivências com o currículo, tais achados nos convidam a problematizar o que temos chamado de “profissional crítico e reflexivo”, tanto quanto à contribuição das ciências sociais e humanas no estudo da ocupação/atividades humanas, especialmente na abordagem das juventudes.

Agradecimentos

Nossos agradecimentos mais sinceros aos jovens que compartilharam suas histórias de vida conosco. Gratidão também aos discentes do curso de Terapia Ocupacional da UFPel pela coragem de percorrer os caminhos arriscados da experimentação educacional.

  • Costa MKCM, Dias PCM, Almeida DERG. As Escrevivências no ensino de Terapia Ocupacional sobre/com as juventudes. Interface (Botucatu). 2024; 28: e230284 https://doi.org/10.1590/interface.230284
  • Financiamento

    Programa de Bolsas Acadêmicas da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da Universidade Federal de Pelotas.

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Editado por

Editora
Roseli Esquerdo Lopes
Editora associada
Flavia Liberman

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2023
  • Aceito
    01 Dez 2023
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