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Revelações do self: uma autoetnografia a partir do Hajj

Revelations of self: an autoethnography from the Hajj

BARBOSA, Francirosy Campos. . Hajja, Hajja: a experiência de peregrinar. São Bernardo do Campo: Ambigrama, 2021, 109pp.

O Hajj, ou peregrinação a Meca, é um dos pilares do islã - juntamente com a profissão de fé (shahada), a oração (salat), o jejum (sawm) e a doação (zakat) - e deve ser realizado por todo muçulmano, seja homem ou mulher, pelo menos uma vez na vida, desde que tenha condições físicas e econômicas. A experiência do Hajj se compõe de três momentos rituais: o antes, o durante e o depois da viagem.

Os preparativos antes da partida envolvem uma série de exigências, tais como a realização de rituais burocráticos e administrativos que podem levar meses, a mobilização de uma soma inalcançável para a maioria dos muitos muçulmanos e uma dose de sorte, às vezes interpretada como obra do destino (Hammoudi 2005HAMMOUDI, Abdellah. (2005), Une saison à la Mecque: récit de pèlerinage. Paris: Le Seuil.; Boissevain 2013BOISSEVAIN, Katia. (2013), “Preparing for the Hajj in Contemporary Tunisia: Between Religious and Administrative Ritual”. In: B. Dupret, T. Pierret, P. G. Pinto e K. Spellman-Poots (ed.). Ethnographies of Islam: Ritual, Performances and Everyday Practices. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2. ed.). O ciclo ritual se compõe de diferentes etapas e envolve um percurso por Meca e seus arredores. Durante esse grande ritual coletivo, o peregrino vive a experiência religiosa, reafirma a sua identidade muçulmana e o seu pertencimento à umma, a comunidade global dos muçulmanos, materializada nos mais de 2 milhões1 1 Em 2017, ano em que a autora realizou a peregrinação, o número total de peregrinos foi de 2.352.122, de acordo com documento emitido pelo governo saudita. Disponível em: https://www.stats.gov.sa/sites/default/files/haj_40_en.pdf. de fiéis de todas as partes do mundo reunidos em Meca. Depois de cumprir com essa obrigação religiosa, os muçulmanos são chamados de Hajji ou Hajja, uma distinção que expressa o capital simbólico adquirido por quem realiza o mais disputado, árduo e dispendioso dos rituais islâmicos. Relatos orais, escritos ou na forma de fotografias costumam se seguir ao retorno do peregrino (Pinto 2019PINTO, Paulo G. (2019), “Pilgrimage and Transnational Religious Imagination in the Muslim Communities of Brazil”. In: B. Rahimi e P. Eshaghi (ed.). Muslim Pilgrimage in the Modern World. Chapel Hill: University of North Carolina Press. ).

Talvez o mais célebre relato da peregrinação a Meca seja o de Sir Richard F. Burton (1964BURTON, Richard F. (1964), Personal Narrative of a Pilgrimage to Al-Madina and Meccah. New York: Dover Publications, Inc.), diplomata e orientalista britânico que empreendeu essa jornada disfarçado de muçulmano em 1853. Mais recentemente, a etnografia do antropólogo muçulmano Abdellah Hammoudi (2005HAMMOUDI, Abdellah. (2005), Une saison à la Mecque: récit de pèlerinage. Paris: Le Seuil.), que fez o Hajj em 1999, revela uma experiência da peregrinação marcada por análises e reflexões teóricas. Para além dos relatos pessoais, diversas pesquisas discutem o Hajj enquanto noção e prática, seja do ponto de vista histórico ou antropológico (e.g. Metcalf 1990METCALF, Barbara D. (1990), “The pilgrimage remembered: South Asian accounts of the hajj”. In: D. F. Eickelman & J. Piscatori (ed.). Muslim Travellers: pilgrimage, migration, and the religious imagination. London: Routledge.; Boissevain 2013BOISSEVAIN, Katia. (2013), “Preparing for the Hajj in Contemporary Tunisia: Between Religious and Administrative Ritual”. In: B. Dupret, T. Pierret, P. G. Pinto e K. Spellman-Poots (ed.). Ethnographies of Islam: Ritual, Performances and Everyday Practices. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2. ed.; Chiffoleau 2015CHIFFOLEAU, Sylvia. (2015), Le Voyage à La Mecque: un pèlerinage mondial en terre d’Islam. Paris: Belin.). Paulo Pinto (2019PINTO, Paulo G. (2019), “Pilgrimage and Transnational Religious Imagination in the Muslim Communities of Brazil”. In: B. Rahimi e P. Eshaghi (ed.). Muslim Pilgrimage in the Modern World. Chapel Hill: University of North Carolina Press. ) analisa, especificamente, as práticas de peregrinação entre muçulmanos brasileiros, dos quais os convertidos compõem uma importante parcela. De acordo com Pinto (:99), o número de muçulmanos que fazem o Hajj a partir do Brasil varia entre 100 e 150 ao ano, entre homens e mulheres. Em 2017, Francirosy Campos Barbosa foi uma delas.

A estrutura narrativa de Hajja, Hajja se inicia com uma apresentação da interseção dos pertencimentos acadêmico e religioso da autora, que enfatiza os seus 20 anos de pesquisa em comunidades muçulmanas, a conversão ao islã em 2013, um pós-doutorado no esforço de construir um lugar legítimo na academia como muçulmana e, finalmente, o cumprimento do quinto pilar do islã, a peregrinação a Meca, em 2017 - quando a dra. se torna, também, Hajja. Em seguida, Barbosa discute as ambiguidades e dificuldades das quais não pode se furtar na construção de uma metodologia de pesquisa. E é por meio do método autoetnográfico que Barbosa propõe uma reflexão sobre ritual a partir das suas próprias percepções do sensível, tendo como contexto o ciclo ritual do Hajj e como recorte uma “perspectiva feminina” (:41).

O núcleo da narrativa se divide em seis seções que descrevem o antes, o durante e o depois da viagem. Os preparativos se iniciam um mês antes da sua partida para a Arábia Saudita, quando ela recebe a ligação telefônica que anuncia a aprovação da sua participação no Hajj 2017. Esse período foi ocupado por estudos sobre o Hajj, mas também por rituais administrativos e burocráticos. Nesse período liminar, Barbosa experienciou uma sensação de morte, que ela interpretou como a morte simbólica que antecede a transformação da muçulmana pelo processo ritual.

Uma vez no destino, Barbosa nos conduz a Medina, cidade caracterizada pelo comércio e que abriga a Mesquita do Profeta. Em seguida, ela nos leva a Meca, onde o ciclo ritual se inicia, propriamente, e cujo rito central é a circumbulação da Caaba.2 2 A Caaba é o ponto focal do Hajj e o maior centro sagrado do islã, para onde os muçulmanos de todo o mundo se direcionam durante as orações. Situada na Grande Mesquita de Meca, a Caaba é uma estrutura cúbica que simboliza a “Casa de Deus” na Terra e a aliança entre Deus e Abraão, confirmada por Muhammad. Como parte do ciclo ritual do Hajj, os peregrinos dão sete voltas no sentido anti-horário em torno da Caaba. Ela segue, então, para Mina, cidade onde os peregrinos se concentram todos ao mesmo tempo e a experiência da coletividade se intensifica. O ciclo ritual termina em Arafat, onde o Profeta Muhammad proferiu o seu último sermão. A descrição das condições concretas da peregrinação constrói ambientes cheios de cores, cheiros e sons; enquanto a descrição das práticas rituais acrescenta uma dimensão espiritual às imagens narradas.

O argumento central de Barbosa é que a força da experiência religiosa produzida pelo ritual do Hajj transforma, de algum modo e em algum nível, a peregrina. “Você encontra no Hajj o que vai buscar”, a autora repete aqui e ali. Depois da viagem, por meio do esforço de descrever e codificar em texto a sua experiência, a autora parece encontrar o que foi buscar no Hajj: a reconfiguração do seu self religioso e a reafirmação da sua identidade muçulmana.

No entanto, a proposta de Barbosa pouco supera uma autobiografia. Enquanto há uma discussão teórica e metodológica na primeira parte do livro, a descrição do ciclo ritual carece de conceitos analíticos e, logo, de uma análise antropológica. O que o leitor encontra é uma coleção de memórias da peregrina. Se a autoetnografia é um método que usa experiências pessoais como ponto de partida para uma análise antropológica (Wulff 2021WULFF, Helena. (2021), “Writing Anthropology”. In: F. Stein, S. Lazar, M. Candea, H. Diemberger, J. Robbins, A. Sanchez & R. Stasch (ed.). The Cambridge Encyclopedia of Anthropology. Cambridge: Cambridge University Press.), é preciso indagar qual é o interesse etnográfico de um relato de sentimentos, emoções e percepções desprovido de um aporte teórico e conceitual.

A ausência de uma interlocução com conceitos analíticos se reflete nas contradições que marcam o discurso da autora. Por um lado, Barbosa situa sua pesquisa na interseção entre islã e gênero, além de acionar repetidamente a categoria “feminino”, que ela não conceitualiza, para indexar sua “perspectiva”. Por outro lado, ela sugere que as mulheres necessitam de orientação, seja de um marido, de Muhammad ou de Deus (:65). De fato, ao longo do texto, seus discursos e práticas legitimadores da autoridade religiosa de shaykhs (líderes religiosos) contrastam com seus discursos reprovadores das condutas de outras mulheres peregrinas (por exemplo, nas páginas 59-61, 79 e 92). Quer como antropóloga, quer como muçulmana, Barbosa acaba por reproduzir noções e práticas hierarquizantes entre homens e mulheres.

O texto se beneficiaria de um diálogo com a literatura antropológica sobre o Hajj ou mesmo outras peregrinações muçulmanas. A trivialidade de certos relatos, tais como quando a autora escovou os dentes ou tomou banho, torna um tanto angustiante a ausência de análises dos símbolos do ritual e seus papéis sociais e políticos, das tensões geradas pela normatividade do programa do Hajj e dos efeitos das inflexões wahhabitas3 3 Wahhabismo é a corrente religiosa dominante na Arábia Saudita, cuja interpretação do islã é bastante restritiva em relação à presença e atuação das mulheres no espaço público. que se impõem pelo controle saudita - para citar alguns temas recorrentes na produção acadêmica sobre o Hajj.

Contudo, as limitações mencionadas anteriormente não obscurecem a relevância e as potencialidades do livro. Desde a década de 1990, a peregrinação a lugares sagrados do islã (Arábia Saudita, Irã e Iraque) tem se tornado uma prática significativa entre os muçulmanos brasileiros (Pinto 2019PINTO, Paulo G. (2019), “Pilgrimage and Transnational Religious Imagination in the Muslim Communities of Brazil”. In: B. Rahimi e P. Eshaghi (ed.). Muslim Pilgrimage in the Modern World. Chapel Hill: University of North Carolina Press. ); entretanto, um relato pessoal do Hajj era, até a publicação de Hajja, Hajja, inexistente na academia brasileira. Como o Hajj é uma peregrinação interdita a não muçulmanos, uma etnografia desse ritual dependeria de um(a) antropólogo(a) nativo(a).

Por último, mas não menos importante, a autoetnografia de Barbosa permite compreender a peregrinação como um rito de passagem que, além de reafirmar a identidade religiosa do peregrino, materializa a ideia de comunidade religiosa global e produz disposições emocionais corporificadas que conectam o peregrino à sua religião. Ademais, a publicação da experiência de Barbosa viabiliza a produção de comparações e confrontações com experiências de outras peregrinas, além de ser o arranque para a construção de uma memória coletiva sobre a experiência do peregrinar entre muçulmanas e muçulmanos no Brasil.

Referências

  • BOISSEVAIN, Katia. (2013), “Preparing for the Hajj in Contemporary Tunisia: Between Religious and Administrative Ritual”. In: B. Dupret, T. Pierret, P. G. Pinto e K. Spellman-Poots (ed.). Ethnographies of Islam: Ritual, Performances and Everyday Practices Edinburgh: Edinburgh University Press, 2. ed.
  • BURTON, Richard F. (1964), Personal Narrative of a Pilgrimage to Al-Madina and Meccah New York: Dover Publications, Inc.
  • CHIFFOLEAU, Sylvia. (2015), Le Voyage à La Mecque: un pèlerinage mondial en terre d’Islam Paris: Belin.
  • HAMMOUDI, Abdellah. (2005), Une saison à la Mecque: récit de pèlerinage Paris: Le Seuil.
  • METCALF, Barbara D. (1990), “The pilgrimage remembered: South Asian accounts of the hajj”. In: D. F. Eickelman & J. Piscatori (ed.). Muslim Travellers: pilgrimage, migration, and the religious imagination London: Routledge.
  • PINTO, Paulo G. (2019), “Pilgrimage and Transnational Religious Imagination in the Muslim Communities of Brazil”. In: B. Rahimi e P. Eshaghi (ed.). Muslim Pilgrimage in the Modern World Chapel Hill: University of North Carolina Press.
  • WULFF, Helena. (2021), “Writing Anthropology”. In: F. Stein, S. Lazar, M. Candea, H. Diemberger, J. Robbins, A. Sanchez & R. Stasch (ed.). The Cambridge Encyclopedia of Anthropology Cambridge: Cambridge University Press.
  • 1
    Em 2017, ano em que a autora realizou a peregrinação, o número total de peregrinos foi de 2.352.122, de acordo com documento emitido pelo governo saudita. Disponível em: https://www.stats.gov.sa/sites/default/files/haj_40_en.pdf.
  • 2
    A Caaba é o ponto focal do Hajj e o maior centro sagrado do islã, para onde os muçulmanos de todo o mundo se direcionam durante as orações. Situada na Grande Mesquita de Meca, a Caaba é uma estrutura cúbica que simboliza a “Casa de Deus” na Terra e a aliança entre Deus e Abraão, confirmada por Muhammad. Como parte do ciclo ritual do Hajj, os peregrinos dão sete voltas no sentido anti-horário em torno da Caaba.
  • 3
    Wahhabismo é a corrente religiosa dominante na Arábia Saudita, cuja interpretação do islã é bastante restritiva em relação à presença e atuação das mulheres no espaço público.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    03 Maio 2021
  • Aceito
    13 Jul 2021
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